domingo, 27 de setembro de 2009

EDUCAÇÃO JESUÍTICA E CRIANÇAS NEGRAS NO BRASIL COLONIAL

EDUCAÇÃO JESUÍTICA E CRIANÇAS NEGRAS NO BRASIL COLONIAL
AMARILIO FERREIRA Jr.*
MARISA BITTAR*
Introdução
Este trabalho tem como objetivo realçar um aspecto pouco
estudado da história da educação brasileira no período colonial. Trata-se da
educação de crianças negras nos colégios jesuíticos, isto é, dos filhos dos
escravos desafricanizados que nasciam nas fazendas de propriedade da Ordem
Religiosa fundada por Santo Inácio de Loyola (1491-1556). As fontes consultadas
têm revelado que as práticas escolares empreendidas pelos jesuítas eram
realizadas com crianças de várias origens raciais. Contudo, a literatura consagra,
tradicionalmente, apenas a empresa educacional junto às crianças brancas,
indígenas, mamelucas, e mulatas. Uma evidência desta assertiva é Casa-grande
& Senzala de Gilberto Freire. Na obra em questão, Freire, considerado um dos
três maiores intérpretes do Brasil, definiu as origens étnicas dos alunos que
freqüentaram os colégios jesuíticos da seguinte forma:
“Descobriram os primeiros missionários que andavam nus e à toa
pelos matos meninos quase brancos, descendentes de normandos
e portugueses. E procuram recolher aos seus colégios esses joõesfelpudos.
Foi uma heterogênea população infantil a que se
reuniu nos colégios dos padres nos séculos XVI e XVII: filhos de
caboclos arrancados aos pais; filhos de normandos encontrados
nos matos; filhos de portugueses; mamelucos; meninos órfãos
vindos de Lisboa. Meninos louros sardentos, pardos morenos, cor
de canela. Só negros e muleques parecem ter sido barrados
das primeiras escolas jesuítica. Negros e muleques retintos.”1
(grifo nosso).
*Professores do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e
doutores em História Social pela USP-SP.
1FREIRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala, p. 413.
2
Assim, tem-se dado pouca atenção para o fato de que os
filhos dos escravos pertencentes aos missionários-fazendeiros também foram
educados nas escolas concebidas pelo Ratio Studiorum. Evidentemente que a
educação de crianças negras no Brasil colonial foi um fenômeno residual.
Constituiu-se numa exceção da regra geral que caracteriza os grandes traços
explicativos da história da educação do período em tela, ou seja, a exclusão da
ampla maioria do povo brasileiro. Entretanto, mesmo tendo se constituído numa
exceção, merece uma interpretação histórica.
Os colégios das primeiras letras ocupavam um espaço físico
central nas fazendas da Companhia de Jesus. Essas escolas do bê-á-bá eram
importantes no ritual de realização da catequese, ou seja, da conversão dos
“gentios” ao cristianismo. Os filhos das famílias escravas também ganharam o
direito de freqüentar tais escolas. Serafim Leite nos informa que “quando
começaram a preponderar os negros nas fazendas principais, como a de Santa
Cruz, ao pé do Rio de Janeiro, a escola de rudimentos e de catequese era para os
filhos dos escravos.”2 Portanto, ao contrário do colonizador comum, “os jesuítas
deixavam perfeita liberdade aos seus escravos de escolherem as noivas e noivos,
sem se preocuparem com a côr; azeviche africana ou o bronze indígena. Mas a lei
era que se casasse cada qual dentro da sua categoria social.”3
Investigar o fenômeno da educação infantil no período
colonial, portanto, significa desvelar aspectos importantes da própria formação
sócio-econômica brasileira. Esta afirmação ganha a sua verdadeira dimensão
quando nos deparamos com o papel econômico, cultural e político que a
Companhia de Jesus desempenhou no processo de consolidação do sistema
colonial português, pois, em quase 500 anos de nossa história os jesuítas
detiveram o monopólio educacional por 210 anos (1549-1759).
Além disso, importa acrescentar que este trabalho é resultante
de uma pesquisa realizada com base em dois tipos de textos. Como fontes
primárias foram utilizados documentos originais do período colonial impressos nos
2LEITE, Serafim, S.J. Breve história da Companhia de Jesus no Brasil: 1549-1760, p. 40.
3LEITE, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus, t. VI, p. 59. Os grifos são nosso.
3
IV volumes que reuniram as Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil e também
encontrados nos X tomos da História da Companhia de Jesus no Brasil, todos
selecionados e organizados pelo padre Serafim Leite, S.J. Já o segundo tipo de
referência foi a bibliografia clássica produzida pelos chamados intérpretes da
história do Brasil, tais como: Casa-grande & Senzala de Gilberto Freire; Raízes
do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda; e Evolução política do Brasil de Caio
Prado Jr.
A Companhia de Jesus e a escravidão negra
Os jesuítas empregaram largamente as relações escravistas
de produção nas suas propriedades utilizando os negros desafricanizados. A
tentativa de escravização dos índios pelo sistema colonial português no Brasil
esbarrou, entre outros, em dois fatores importantes: de um lado, porque “resultou
inviável na escala requerida pelas empresas agrícolas de grande envergadura que
eram os engenhos de açúcar”;4 do outro, porque o grupo mercantil metropolitano,
que desde 1441 já traficava negros do norte da África,5 tinha “no comércio de
africanos fabulosa fonte de lucro.”6 A conjugação dessas circunstâncias acabou
determinando a proibição, por parte da Igreja Católica, da escravização dos índios
americanos e a oficialização do tráfico negreiro em larga escala no Atlântico Sul.
Mesmo antes que este interdito se efetivasse através da bula do Papa Urbano VIII
(1639),7 o padre Manuel da Nóbrega, em correspondência enviada ao Provincial
de Portugal, datada de 1557, reivindicava que:
“(...) se Sua Alteza nos quisesse mandar dar uma boa dada de
terras, onde ainda não for dada, com alguns escravos da
Guiné, que façam mantimentos para esta Casa e criem criações, e
4FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. p. 41.
5GOULART, Maurício. A escravidão africana no Brasil, p. 07.
6GORENDER, Jacob. O escravismo colonial, p. 132.
7O Breve do Papa Urbano VIII, de 22 de abril de 1639, estabelecia que “daqui por diante não
ousarem ou presumam cativar os sobreditos Índios, vendê-los, comprá-los, trocá-los, dá-los,
apartá-los de suas mulheres e filhos, privá-los de sues bens e fazendas, levá-los e mandá-los para
outro lugares, privá-los de qualquer modo da liberdade (...).” (PAPA URBANO VIII. Commisum
Nobis: sobre a Liberdade dos Índios da América, p. 570.).
4
assim para andarem em um barco pescando e buscando o
necessário, seria muito acertado, e seria a mais certa maneira de
mantimento desta Casa. Escravos da terra não nos parece bem
tê-los por alguns inconvenientes. Destes escravos da Guiné
manda ele trazer muitos à terra. Podia-se haver provisão para que
dos primeiros que viessem nos desse os que Sua Alteza quisesse,
porque uns três ou quatro, que nos mandou dar há certos anos,
todos estão mortos, salvo uma negra, que serve esta Casa de lavar
roupa, que ainda que o não faz muito bem, excusa-nos muitos
trabalhos. A mantença desta casa foi até agora muito trabalhosa e
quase miraculosamente se mantém nela tanta gente sem ter
escravos que pesque, nem quem traga água e lenha e coisas
semelhantes, e fora-o muito mais se não nos repartíramos pelas
Aldeias dos Índios, que nos mantinham e daí muitas vezes se
proviam os desta Casa.”8 (grifo nosso).
Os tais “inconvenientes” aludidos pelo padre Manuel da
Nóbrega, no sentido de que não se devia utilizar os “escravos da terra”, eram de
ordem econômica e religiosa. Entretanto, na mesma proporção em que se deixava
de escravizar os indígenas, no início da segunda metade do século XVI,
aumentava o tráfico negreiro patrocinado pela metrópole portuguesa.9 Neste
ponto, a Companhia de Jesus estava em perfeita sintonia com os interesses
coloniais defendidos pela burguesia mercantil para a América. Ou como afirmou
Goulart:
“(...) realmente, quanto mais óbices se levantassem à exploração do
gentio americano, mais africanos se tornariam necessários aos
colonos. E se, às múltiplas vantagens oferecidas pelos negros,
havia ainda a acrescentar-se a possibilidade de explorá-los sem a
ameaça do inferno, era natural que a sua procura, e,
consequentemente, o seu valor aumentassem.”10
A verdade foi que a Companhia de Jesus participou
ativamente da montagem do sistema colonial implantado pela Cora portuguesa no
Brasil. O núcleo do modelo colonial português estava assentado nos quatro
8NÓBREGA, Manuel de, S.J. Carta de 2 de setembro de 1557, p. 411-412.
9O padre Fernão Cardim, descrevendo a Capitania de Pernambuco, dava conta em “Informação da
missão do P. Christovão Gouvêa as partes do Brasil”, escrita em 1585, que tinha “passante de dois
mil vizinhos entre vila e termo, com muita escravaria de Guiné, que serão perto de dois mil
escravos: os índios da terra são já poucos.” (CARDIM, Padre Fernão. Tratados da terra e gente
do Brasil, p. 294.).
10GOULART, Maurício. A escravidão africana no Brasil, p. 54-55.
5
elementos que davam sustentação econômica à plantation, isto é: latifúndio,
escravidão, monocultura e produção voltada para o mercado externo. O centro da
empresa colonial, nos séculos XVII e XVIII, eram os engenhos e as fazendas
criadoras de gado, com uma larga predominância dos primeiros sobre as
segundas.11 A partir da segunda metade do século XVII, a Companhia de Jesus já
era proprietária de muitas fazendas de cana-de-açúcar e criação de gado. Ela
havia acumulado, segundo Serafim Leite, um total de 359 fazendas até 1759,
quando da expulsão dos jesuítas do Brasil.12 Presume-se que a riqueza
amealhada pelos seguidores de Santo Inácio de Loyola, durante os primeiros 210
anos da sua permanência na terra brasílica, tenha significado uma expressiva
parte do PIB da colônia portuguesa na América. A importância econômica da
empresa inaciana, no período em tela, foi realçada por Furtado assim:
”(...) o sistema jesuítico, cuja produtividade aparentemente chegou
a ser elevada mas sobre o qual não se dispõe de muitas
informações – a Ordem não pagava impostos nem publicava
estatísticas – entrou em decadência com a perseguição que sofreu
na época de Pombal.”13
Deste modo, o trabalho escravo, nas propriedades dos
missionários-fazendeiros da Companhia de Jesus, transformou-se na principal
mão-de-obra utilizada nas relações sociais de produção.
As fazendas da Companhia de Jesus
Desde o início ficou muito claro para o fundador da missão
jesuítica no Brasil, padre Manuel de Nóbrega, que seria impossível à empresa
evangelizadora idealizada por Santo Inácio de Loyola lograr êxito sem a existência
11Furtado, referindo-se as regiões criadoras de gado (interior) que dependiam economicamente
das plantadoras de cana-de-açúcar (litoral), estabeleceu a seguinte diferença de renda entre as
duas atividades em ternos de riqueza: “se nos limitarmos à região diretamente dependente da
economia açucareira, a começos do século XVII, dificilmente se pode admitir que sua renda bruta
alcançasse cem mil libras, numa época em que o valor da exportação de açúcar possivelmente
superava os dois milhões.” (FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil, p. 58.).
12LEITE, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus, t. X, p. 88-93.
13FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. p. 90.
6
de uma base econômica que desse sustentação às escolas do bê-á-bá, aquelas
que serviam de suporte à catequese dos “gentios”. Assim, o esforço para a
fundação de fazendas de açúcar e gado, como resultado da iniciativa do primeiro
Provincial do Brasil (1553-1560), estava organicamente vinculado ao projeto
educacional desenvolvido pela Companhia de Jesus no Brasil colonial. Portanto,
com o passar do tempo basicamente todos os colégios jesuíticos do ensino
fundamental tinham uma fazenda. A origem da primeira fazenda jesuítica data de
1550, ou seja, apenas um ano após a chegada da Missão ao Brasil. Tomé de
Sousa, então Governador-Geral, doou a sesmaria de “Água dos Meninos” à
Companhia de Jesus utilizando o seguinte argumento:
“Faço saber como o P. Manuel da Nóbrega, que ora tem cuidado da
Casa do Nome de Jesus nesta cidade do Salvador, me enviou dizer
por sua petição como a dita Casa tinha necessidade de terras para
fazerem mantimentos, porquanto a intenção d’El-Rey e dos Padres
da Companhia é nela criar e ensinar moços do gentio, que por
tempos levem o nome do Senhor a todas as gentes, e que não se
podiam sustentar de outra maneira. E porque queiram fazer roças
de mantimentos e outra coisas para ajuda do sustentamento da dita
gente e Padres que na dita casa estão (...).”14
A tomada de decisão do padre Manuel de Nóbrega, no sentido
da montagem de uma fazenda na sesmaria de “Água dos Meninos”, logo
demonstrou os seus resultados positivos. Em carta datada de 1552, ele informava
o padre Simão Rodrigues, fundador da Província da Companhia de Jesus em
Portugal, que:
“(...) depois que vieram os escravos d’El-Rei, de Guiné a esta terra,
tomaram os Padres fiados por dois anos três escravos, dando
fiadores a isso, e acaba-se o tempo agora cedo. Desta vestiaria fiz
marcar outros escravos da terra. Este ano que virão vacas d’El-Rei
também tomei doze fiadas a El-Rei, dando fiadores para daí um ano
se pagar, para criação e leite para os meninos. Tenho principiado
casas para os meninos, conforme a terra. Até agora passamos
muito trabalho por os manter; já agora, que os mantimentos se vão
comendo, vai a casa em muito crescimento e os meninos tem o
necessário cada vez melhor; de maneira que donde antes com
14SOUSA, Tomé de. Sesmaria de “Água de Meninos” dada pelo governador Tomé de Sousa
ao P. Manuel de Nóbrega, Baía, p. 195.
7
muita fortuna mantínhamos a sete ou oito, agora mantém a casa
cinqüenta e tantas pessoas sem o sentir. Tem a casa um barco e
escravos que matam peixe.”15
Por este relato, Nóbrega deixa claro que não havia
incompatibilidade entre os interesses coloniais da Coroa portuguesa e a missão
evangelizadora da Companhia de Jesus no Brasil. Eles se fundiam no tripé
econômico nuclear do modelo colonial adotado, isto é: terra, escravidão e
agropecuária. Por outro lado, se até a segunda metade do século XVI as
atividades econômicas da Companhia de Jesus ainda tinham um caráter de
subsistência, ou seja, as fazendas produziam apenas para as necessidades
materiais de sobrevivência dos padres jesuítas, a partir dos séculos XVII e XVIII as
mesmas já eram uma empresa mercantil respeitável do ponto de vista da
produtividade econômica.
Para ilustração de tal afirmativa, tomemos como exemplo uma
fazenda emblemática do império econômico montado pela Companhia de Jesus
no período colonial. A fazenda de Santa Cruz (RJ), com 10 léguas quadradas de
extensão territorial (a légua geométrica é igual a 6 Km), foi considerada um dos
maiores empreendimentos dos padres jesuítas. Segundo Serafim Leite, ela
aparecia no Catálogo da ordem religiosa inaciana, em 1757, com as seguintes
propriedades:
“(...) o gado: cavalar, 948 cabeças; bovino, 9.344. Para sustento dos
Padres do Colégio tiram-se anualmente 500 reses além das que
eventualmente se gastam nos trabalhos das fazendas. O gado
vendido rendia a soma anual de 4.000 escudos romanos, que em
sua maior parte se remetiam para Lisboa em pagamento do que de
lá vinha, vestuário e as mil coisas indispensáveis à vida do Colégio,
que não havia na terra e tinham de vir de fora. A Fazenda recebeu,
este ano de 1757, 1.645 escudos e gastou 1.282; a Igreja 360 e
gastou 230.”16
15NÓBREGA, Manuel de, S.J. Carta de fins de agosto de 1552, p. 403.
16LEITE, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus, t. VI, p. 57.
8
Para manter esta prosperidade econômica, os missionáriosfazendeiros
utilizaram largamente as relações escravistas de produção na
Fazenda de Santa Cruz. O número da população de escravos negros, em 1757,
chegou a 740. “Só no núcleo central [da fazenda] havia 232 senzalas, onde as
famílias viviam sobre si mesmas, à parte, se eram de prole numerosa.”17 Foi essa
prole das famílias escravas negras que trabalhavam nas fazendas de açúcar e
gado da Companhia de Jesus que ganhou também o direito de estudar nas únicas
escolas do bê-á-bá existentes na história do Brasil colonial.
Educação jesuítica e crianças negras: a catequese com os filhos dos
escravos
A missão evangelizadora da Companhia de Jesus no Novo
Continente foi um corolário causado pelas guerras religiosas entre católicos e
protestantes que inundaram de sangue a Europa do século XVI. Ela tinha como
escopo principal converter ao catolicismo os “gentios” que habitavam as Américas
e, ao mesmo tempo, vencer uma das batalhas da guerra religiosa travada contra
os cristãos reformados. Melhor: “era imperativo ganhar novas almas para o
rebanho da Igreja Romana.”18
No início do século XVI, a ação religiosa dos padres inacianos
estava centrada apenas na conversão dos indígenas através do chamado
aldeamento. “Os Jesuítas procuraram agrupar estas Aldeias com mira às três
condições de defesa, catequese e subsistência (...).”19 Mas a catequese não tinha
um sentido apenas de conversão à fé cristã mediante o ensino exclusivo da
dogmática católica: ia além disso. O próprio Serafim Leite esclarece que “a
Catequese dos Índios, nesta matéria de instrução, não se entende só a do ensino
religioso do catecismo, a não ser com os adultos incapazes de mais; com os
17LEITE, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus, t. VI, p. 59.
18FERREIRA Jr., Amarilio; BITTAR, Marisa. Educação e capitalismo periférico globalizado, p.
166.
19LEITE, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus, t. V, p. 240.
9
meninos inclui-se também o de ler, escrever, ou elementos [matemática].”20
Deixemos, porém, que a própria lavra do padre José de Anchieta, um dos mais
importantes catequistas jesuíticos do século XVI, explique como ocorria na prática
a doutrinação, simbiose entre conversão e educação, dos meninos indígenas de
Piratininga, em 1556:
“(...) quase todos vêm duas vezes por dia à escola, sobretudo
de manhã; pois de tarde todos se dão à caça ou à pesca para
procurarem o sustento; se não trabalham, não comem. Mas o
principal cuidado que temos deles está em lhes declararmos os
rudimentos da fé, sem descuidar o ensino das letras; estimamnos
tanto que, se não fosse esta atração, talvez nem os
pudéssemos levar a mais nada. Dão conta das coisas da fé por um
formulário de perguntas, e alguns mesmo sem ele. Muitos
confessaram-se este ano, e fizeram-no em muitas outras ocasiões
do que não tivemos pouca alegria; pois alguns confessam-se com
tal pureza e distinção, e sem deixarem sequer as mais mínimas
coisas, que facilmente deixam atrás os filhos dos cristãos:
recomendo-lhes que se preparassem para o sacramento, disse um:
é tão grande a força da confissão que, a seguir a ela, nos parece
que queremos voar para o céu com grande velocidade.”21 (grifo
nosso).
Este mesmo princípio de conversão religiosa ao catolicismo, a
combinação de catequese com o ensino das primeiras letras, foi utilizado mais
tarde, nos séculos XVII e XVIII, nas próprias fazendas da Companhia de Jesus
com os filhos dos escravos que nelas trabalhavam. Serafim Leite comprova a
empreitada educacional jesuítica com os filhos dos negros que eram escravos
nessas propriedades agrárias com os seguintes atos:
“E o que ela [Companhia de Jesus] fez pela catequese e elevação
moral dos Escravos, além do proverbial bom trato que lhes dava,
afere-se por este tríplice fato: foi um jesuíta o P. Pero Dias,
Apóstolo dos Negros do Brasil, que escreveu a Arte da Língua
de Angola com o propósito deliberado de melhor os amparar e
servir; fundou-se nos Colégios o apostolado do mar à chegada dos
navios de África; e multiplicaram-se, a favor dos Negros dos
Engenhos e Fazendas, as missões discurrentes, saídas dos
20LEITE, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus, t. VII, p. 145.
21ANCHIETA, José, S.J. Carta trimestral de maio a agosto de 1556 pelo Ir. José de Anchieta,
p. 308.
10
Colégios de cada região, em toda a extensão do Brasil.”22 (grifo
nosso).
Contudo, o autor da monumental obra sobre a História da
Companhia de Jesus no Brasil tentou buscar um atenuante que empalidecesse
um fato insofismável: a Ordem Religiosa fundada por Santo Inácio de Loyola
empregara largamente as relações escravistas de produção, tanto quanto o
colonizador português, nas suas propriedades do Brasil colonial. Para Serafim
Leite a principal diferença de comportamento entre o colonizador comum e o
fazendeiro-missionário jesuítico, com relação à escravidão, era o fato de que o
segundo, ao contrário do primeiro, tinha assumido em relação aos negros o
compromisso da educação:
“Os Escravos Negros não eram livres para buscarem a instrução
média e superior, e claro está que o senhores não os compravam
para os mandar aos estudos e fazer deles bacharéis ou Sacerdotes.
A instrução ou educação, que lhes permitiam, essa, e mais do
que essa, lhes ensinava a Igreja. E a Igreja foi a única educadora
do Brasil até ao final do século XVIII, representada por todas as
organizações religiosas do Clero Secular e do Clero Regular, que
possuíam casas no Brasil.”23 (grifo nosso).
A ação educadora realizava-se nos colégios de rudimentos
(primeiras letras) construídos em cada uma das fazendas de propriedade da
Companhia de Jesus, nos quais as crianças negras preparavam-se para a
catequese. O princípio educativo que embasava as atividades pedagógicas
desses colégios do bê-á-bá estava consubstanciado no famoso Ratio Studiorum.
A sua característica fundamental era a organização de um processo de ensinoaprendizagem
fundado na concepção mnemônica do ensino. Podemos perceber
tal princípio educativo na parte destinada às “Regras comuns aos professores das
classes inferiores”. Neste caso, dois exemplos são ilustrativos: a “regra n.º 19 -
Exercício de memória” recomendava que “os alunos recitem as lições de cor aos
22LEITE, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus, t. VII, p. 144-145.
23LEITE, Serafim, S.J. História da Companhia de Jesus, t. VII, p. 144.
11
decuriões (...). Aos sábado recite-se em público o que foi aprendido de cor numa
ou várias semanas; terminado um livro, poderão escolher-se alguns que da
cátedra o recitem desde o princípio, não sem prêmio.”24 Já a “regra n.º 25 –
Repetição” não deixava dúvidas quanto ao processo de estudo dos alunos para as
aulas subseqüentes: “do mesmo modo faça-se a repetição da lição do dia e da
véspera (...).”25
A conseqüência mais nefasta desta metodologia de ensinoaprendizagem
foi o sadismo pedagógico perpetrado contra os alunos, e que se
manifestava principalmente através de castigos corporais. Mais uma vez, o Ratio
Studiorum era preciso nas suas recomendações com relação à aplicação que os
alunos deveriam ter nos estudos: a “regra n.º 39 – Cuidado da disciplina”
estipulava que “(...) o principal cuidado do professor seja, portanto, que os alunos
não só observem tudo quanto se encontra nas regras mas sigam todas as
prescrições relativas aos estudos (...).”26 Aos alunos que eram considerados
negligentes com as suas tarefas acadêmicas aplicava-se a “regra n.º 40 – Modo
de castigar”, que recomendava ao professor o seguinte procedimento disciplinar:
“não seja precipitado no castigar nem demasiado no inquirir;
dissimule de preferência quando o puder sem prejuízo de ninguém;
não só não inflija nenhum castigo físico (este é ofício do
corretor) mas abstenha-se de qualquer injúria, por palavras ou
atos; (...) ao Prefeito deixe os castigos mais severos ou menos
costumados, sobretudo por faltas cometidas fora da aula, como a
ele remeta os que se recusam aceitar os castigos físicos (...).”27
(grifo nosso).
A figura do “corretor” de castigos físicos era tradicional nos
colégios jesuíticos. Ou como afirmou o padre Leonel Franca: “para o ingrato mister
cumpria tomar um oficial de fora, o Corretor, homem sério e moderado, que
administrava a punição de acordo com as instruções recebidas do Prefeito de
estudos.”28 A tradição que instituíra a figura do “corretor” de castigos físicos na
24COMPANHIA DE JESUS. Ratio Studiorum, p. 184.
25COMPANHIA DE JESUS. Ratio Studiorum, p. 185.
26COMPANHIA DE JESUS. Ratio Studiorum, p. 189.
27COMPANHIA DE JESUS. Ratio Studiorum, p. 190.
28FRANCA, Leonel, S.J. O método de estudo dos jesuítas, 62-63.
12
empresa educacional jesuítica remontava ao início da colonização do Brasil. Mém
de Sá, Governador-Geral do Brasil, numa carta de 1560 ao Rei de Portugal, D.
Sebastião, referindo-se ao processo educativo das crianças indígenas e
mamelucas, escreveu: “também mandei fazer tronco em cada vila e pelourinho,
por lhes mostrar que tem tudo o que os cristãos tem, e para o meirinho [corretor]
meter os moços no tronco quando fogem da escola, e para outros casos leves,
com autoridade de quem os ensina, [os padres jesuítas].”29
Deste modo, os filhos dos escravos que nasciam nas fazendas
da Companhia de Jesus, que sofreram o processo de conversão ao cristianismo
católico através da catequese, também sentiram na pele a prática do sadismo
pedagógico inerente ao projeto educacional desenvolvido pelos jesuítas. Em
outras palavras: elas estavam sujeitas às punições físicas aplicadas nos colégios
das primeiras letras organizados pelos padres inacianos no Brasil colonial. E é
impossível entender a lógica de funcionamento dessas instituições escolares, que
desempenharam um papel fundamental na empresa colonial, desassociada da
concepção de educação formulada pelo Ratio Studiorum.
Conclusão
O projeto educacional da Companhia de Jesus implantado no
Brasil colonial estava a serviço de uma ordem social violenta. O processo de
aculturação e conversão ao cristianismo imposto pela Igreja Católica tanto ao índio
quanto ao negro visava apenas construir o império colonial jesuítico-lusitano. Esta
relação existente entre educação e violência no contexto histórico do período
colonial reveste-se de importância fundamental; pois, a formação social brasileira
é marcada profundamente por um brutal processo de exploração autoritário
exercido pelas elites dominantes sobre as classes subalternas. Não só contra os
“gentios” que habitavam as terras brasílicas desde os tempos imemoriais, mas,
também, contra os negros desafricanizados. Para Caio Prado Jr. as circunstâncias
29SÁ, Mém de. Carta de Mém de Sá Governador do Brasil a D. Sebastião Rei de Portugal, p.
172. Os grifos são nossos.
13
sociais dos segundos eram piores do que dos primeiros, pois, “as condições dos
escravos negros era mais simples que a dos índios. Não tiveram, como estes,
‘protetores’ jesuítas, e até o Império continuaram simplesmente equiparados às
‘bestas’ das Ordenações Manuelinas.”30
O caráter da formação social engendrado pelo modelo colonial
da Companhia de Jesus no Brasil não encontrou paralelo na história da civilização
ocidental cristã. A missão evangelizadora atribuída aos padres jesuítas, imbricada
com a empreitada colonial lusitana, foi um somatório de violência mortal, de
intolerância e ganância predatória. Sérgio Buarque de Holanda, analisando o
papel da violência com que as classes dominantes subjugaram os explorados no
período colonial, atribuiu aos jesuítas a responsabilidade pela introdução de um
dos traços distintivos do autoritarismo que historicamente perpassa a cultura social
brasileira, pois:
“foram ainda os jesuítas que representaram, melhor do que
ninguém, esse princípio da disciplina pela obediência. Mesmo em
nossa América do Sul, deixaram disso exemplo memorável com
suas reduções [aldeamentos] e doutrinas. Nenhuma tirania
moderna, nenhum teórico da ditadura do proletariado ou Estado
totalitário, chegou sequer a vislumbrar a possibilidade desse
prodígio de racionalização que conseguiram os padres da
Companhia de Jesus em suas missões.”31
Assim, as crianças negras, nas fazendas da Companhia de
Jesus, sofriam de dois tipos simultâneos de violência: primeiro, porque eram
geradas em ventres escravos e, portanto, nasciam marcadas pela maldição
econômica da escravidão; e segundo, porque estavam submetidas a um processo
de aculturação, gerada pela visão cristã de mundo, organizado com base num
método pedagógico que preconizava uma visão repressiva de modelagem da
moral cotidiana do comportamento social.
30PRADO Jr., Caio. Evolução política do Brasil, p. 27.
31Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, p. 39.
14
Fontes e Bibliografia
A- Fontes Primárias Impressas
ANCHIETA, José, S.J. Carta trimestral de maio a agosto de 1556 pelo Ir. José de
Anchieta. In: LEITE, Serafim, S.J. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil:
1553-1558. Coimbra: Tipografia da Atlântida, 1957. v. II, p. 302-310. (Comissão
do IV Centenário da cidade de São Paulo).
CARDIM, Padre Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introdução e
Notas: Baptista Caetano; Capistrano de Abreu & Rodolfo Garcia. 2ª ed. São
Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939.
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