domingo, 27 de setembro de 2009

História cultural e história da educação*

Francisco José Calazans Falcon
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006
Introdução
A tentativa de reunir duas formas de história –
da cultural e a da educação –, que só muito raramente
andam juntas, levou-me a pensar seriamente nos motivos
que poderiam explicar a realidade de tal separação.
Ao longo deste artigo tentarei explicitar o encaminhamento
que demos ao exame dessa realidade.
O texto está dividido em três partes principais: a
primeira trata de algo que se afigura à primeira vista
como uma espécie de ausência, isto é, ao fato de que,
salvo algumas poucas exceções, não se pode constatar
a presença da história da educação no território da
oficina da história; a segunda aborda certas questões
disciplinares e institucionais, mas também historiográficas,
que têm concorrido para a exclusão de determinadas
disciplinas históricas do âmbito do território
do historiador; a terceira, enfim, busca trabalhar
em linhas mais gerais o problema da história cultural
na atualidade historiográfica, nele situando a questão
especifica da história da educação.
As evidências empíricas de uma ausência
Escolhi aleatoriamente algumas das obras que, a
partir dos anos de 1970, procuram analisar, segundo
perspectivas bastante distintas, os rumos da produção
historiográfica ocidental. Entre os inúmeros aspectos
abordados em tais obras (coletivas, por sinal),
observa-se sempre a importância cada vez maior da
história cultural, de início restrita à chamada história
das mentalidades. Mas também se pode observar
nesse mesmo universo textual a ausência quase completa
de trabalhos relativos à história da educação,
como se não competisse realmente aos historiadores
o estudo e a pesquisa de tal história.
Apenas para exemplificar tal ausência, selecionei
alguns dos trabalhos mais importantes de teoria e
historiografia publicados ao longo das ultimas três
décadas, como uma forma de documentar empiricamente
essas afirmações.
Em 1976 foi publicada no Brasil, pela editora
Francisco Alves, a tradução dos três volumes organi-
História cultural e história da educação*
Francisco José Calazans Falcon
Universidade Salgado de Oliveira, Programa de Pós-Graduação em História
* Artigo redigido a partir da exposição realizada no Grupo
de Trabalho História da Educação na 27a Reunião Anual da ANPEd
(Caxambu, MG, 21 a 24 de novembro de 2004).
História cultural e história da educação
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 329
zados por Jacques Le Goff e Pierre Nora intitulados
Faire de l’histoire, respectivamente: História: novos
objetos, História: novos abordagens e História: novos
problemas. Em nenhum desses três volumes, contudo,
há qualquer referência à história da educação,
ao passo que entre os “novos problemas” e as “novas
abordagens” encontramos temas tipicamente culturais,
além do famoso artigo de Le Goff intitulado “As mentalidades:
uma história ambígua”. Quando muito se
poderia hoje assinalar a presença de um artigo precursor
de Roger Chartier e Daniel Roche (1976) – “O
livro: uma mudança de perspectiva” –, desde que, é
claro, sejam situados os estudos sobre livros, leitores
e leituras no âmbito de uma história cultural voltada
para aquelas práticas sociais mais diretamente ligadas
a perspectivas pedagógicas. Essa é, no entanto,
uma questão a ser retomada mais adiante.
Em 1997 foi publicada a obra intitulada Domínios
da história, organizada por Ciro Flamarion Cardoso e
Ronaldo Vainfas. A respeito desse livro pode-se fazer
duas observações: em seus 19 capítulos não há nenhum
dedicado à história da educação; e em nenhum dos dois
capítulos que mais se aproximam de nossas atuais indagações
– o capítulo 2, de Hebe Castro, sobre “História
social”, e o capítulo 5, de Ronaldo Vainfas, sobre
“História das mentalidades e história cultural” – há
qualquer referência à história da educação.
Em 1998 foi editada a tradução brasileira de
Passés recomposés, com o título Passados recompostos:
campos e canteiros da história, obra organizada
por Jean Boutier e Dominique Julia. Também nesse
caso, apesar de a temática ser extremamente contemporânea
dos diversos artigos, a educação – e não apenas
sua história – primou pela ausência.
Em 2001 foi publicado Brasil-Portugal: história,
agenda para o milênio, livro organizado pelos
professores José Jobson Arruda e Luís Adão da Fonseca,
que traz o conjunto das contribuições apresentadas
no ano anterior, em São Paulo, em uma reunião
da qual participaram algumas dezenas de historiadores
brasileiros e portugueses. Examinei, então, atentamente
as seis partes temáticas nas quais se reúnem
as diversas contribuições até agora apresentadas, e
notei que em nenhuma delas foi possível localizar algum
texto, alguma referência, à história da educação.
Certamente esses exemplos poderiam ser multiplicados,
porém isso pouco acrescentaria ao meu argumento.
Se fosse dada preferência a textos de autores
franceses, ingleses, italianos, espanhóis, portugueses
e norte-americanos, seria possível observar algumas
diferenças com relação à inserção da temática da educação
no âmbito da disciplina histórica, ou, mais concretamente,
na esfera da história cultural, embora não
necessariamente com a história da educação. Vejamos
alguns desses casos:
1. Georges Duby, em seu artigo sobre “Histoire
des mentalités”, hoje um autêntico clássico, publicado
na coletânea L’histoire et ses méthodes, organizada
por Charles Samaran em 1961, afirma que o
estudo das mentalidades do passado deve apoiar-se
numa história da educação entendida no seu sentido
mais lato, isto é, deve partir de todas as comunicações,
e do seu meio, “dos meios através dos quais o
indivíduo recebe os modelos culturais, e, portanto,
em princípio, deve partir de uma história da infância”
(p. 917-918).
2. Nos textos do Colóquio Franco-Húngaro de
Tihany, organizados em 1982 por Jacques Le Goff e
Bela Kopeczi com o título Objet et méthodes de
l’histoire de la culture, só consegui destacar dois artigos
mais ou menos relacionados com o tema que
ora nos ocupa: “Universidade e sociedade na Europa
Moderna”, de Jacques Revel, e “A constituição de uma
rede de colégios em França do século XVI ao XVIII”,
de Dominique Julia.
3. Roger Chartier, em A história cultural: entre
prática e representações (tradução portuguesa publicada
em 1990), inclui dois capítulos bastante próximos
de nossos atuais interesses: o capítulo 4 – “Textos,
impressos, leituras”, e o capítulo 5 – “Práticas e
representações: leituras camponesas em França no século
XVIII”.
4. Em A nova história cultural (1992), organizado
por Lynn Hunt, praticamente não há nada a respeito
de educação, história e cultura, com exceção do
330
Francisco José Calazans Falcon
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006
texto de Chartier sobre “Textos, impressos, leituras”,
já mencionado.
Há também, embora relativamente raros ainda,
alguns trabalhos mais ou menos recentes que abordam
e discutem os problemas principais das relações entre
a história da educação e a história produzida pelos historiadores,
assim como a questão específica das relações
entre história da educação e história cultural:
1. Thais Nivia de Lima e Fonseca é autora de
um interessante artigo intitulado “História da educação
e história cultural”, publicado em 2003 na
coletânea História e historiografia da educação no
Brasil, por ela organizada juntamente com Cynthia
Veiga Greive. Depois de definir a história cultural
como um campo historiográfico, a autora aí situa a
história da educação como um dos seus campos de
investigação. Assim, entendida como uma especialização
da história, a história da educação não pode
ser vista como um campo dotado de metodologia
própria e construtor de seus próprios referenciais teóricos.
Nesse particular, aliás, a autora critica as propostas
de Diana Gonçalves Vidal e Luciano Mendes
de Faria Filho (Lima e Fonseca, 2003, p. 59 e nota
25), bem como a tentativa de Marta Carvalho e
Clarice Nunes no sentido de demarcar fronteiras
entre a história cultural e a história da educação, pois,
no seu entender, as duas não se equivaleriam como
campo historiográfico. Na verdade, portanto, a história
da educação utiliza-se dos procedimentos metodológicos,
dos conceitos e referenciais teóricos,
bem como de muitos objetos de investigação pertencentes
à história cultural, e é no âmbito desta última
que devemos situá-la: “os últimos balanços realizados
sobre a produção em história da educação
indicam uma forte e já reconhecida tendência das
pesquisas na direção da nova história, especialmente
da história cultural” (p. 59-60 e nota 27).
Como principais evidências do que afirma,
Lima e Fonseca (2003) menciona: a busca de novos
objetos e de novas abordagens; a recorrência das referências
a autores como Roger Chartier; a ênfase dos
trabalhos, sobretudo dissertações e teses, na história
das leituras e dos impressos; a grande utilização de
conceitos como circulação, apropriação, representação,
saberes e culturas escolares, ou seja, a preocupação
com as práticas culturais (p. 60 e notas 28 e
29). Segundo a autora, “a contribuição que a história
cultural, como campo dotado de aportes teóricometodológicos,
pode dar ao avanço da história da educação
está no descortinamento de dimensões ainda
pouco exploradas, fora da escola e da escolarização,
bem como a imposição corajosa de novos olhares sobre
essa que é uma dimensão já tradicional” (p. 72).
2. Pere Solà, em comunicação apresentada por
ocasião do Congresso Internacional “História a Debate”,
realizada em 1993, em Santiago de Compostela,
e publicada no tomo dois das respectivas Actas com o
título “El estudio diacrónico de los fenómenos educativos
y las tendencias historiográficas actuales”,
aborda diversas questões bastante atuais a respeito da
história da educação em suas relações com a produção
historiográfica contemporânea.
3. Marta Maria Chagas de Carvalho, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
em um artigo intitulado “A configuração da historiografia
educacional brasileira”, publicado em 1998 no
livro organizado por Marcos Cezar de Freitas com o
título Historiografia brasileira em perspectiva, analisa
algumas das tendências que têm marcado a história
da educação entre nós, tomando como seu principal
exemplo a obra de Fernando de Azevedo e a
tradição que se construiu a partir daí.
Tradições e querelas disciplinares
Memórias e história
Há muitos anos, durante a segunda metade da
década de 1960, participei das discussões que tinham
como tema central a questão da reforma universitária.
Do bojo desse debate emergiu a proposta de liquidação
das faculdades de filosofia, há muito acusadas
– injustamente, por sinal – de constituírem um
sério obstáculo à implementação de uma nova uniHistória
cultural e história da educação
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 331
versidade. Não cabe discutir, aqui e agora, a questão
das faculdades de filosofia. O fato é que, trabalhando
na antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e na Universidade
Federal Fluminense (UFF), presenciei o desmembramento
das antigas faculdades de filosofia e a criação
dos novos institutos: o Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, na UFRJ, e o Instituto de Ciências, História
e Filosofia, na UFF.
Durante as intermináveis discussões que marcaram
a constituição dessas novas unidades, tive minhas
primeiras experiências sobre as dificuldades reais
do historiador para lidar com as chamadas disciplinas
setoriais de história – as disciplinas que, embora
fossem de história, não faziam parte dos departamentos
de história. Seria lógico, então (assim pensávamos
nós, os historiadores), que a reforma em curso
alocasse tais disciplinas de história nos departamentos
de história de cada universidade.
Ledo engano. Aos poucos, viríamos a perceber
as dificuldades de toda ordem para se tomarem providências
aparentemente tão lógicas e naturais. Na
verdade, não havíamos previsto que para cada uma
das histórias de..., dispersas pelos diferentes departamentos
da universidade, existiam sempre ponderáveis
razões a recomendar sua permanência institucional
nos departamentos em que já se achavam alocadas.
Tradição, razões práticas, argumentos teóricos, tudo
pesava a favor do statu quo.
No fundo, como no caso da educação, tratava-se
de uma disciplina (história da educação) que não foi
instituída como especialização temática de história,
mas como parte integrante de uma ciência da educação.
Só mais recentemente o mapeamento e a crítica
da historiografia educacional brasileira “têm posto em
evidência os constrangimentos teóricos e institucionais
que marcaram o processo de constituição da história
da educação como disciplina escolar e campo
de pesquisas” (Carvalho, 1998, p. 329). Trata-se daquilo
que Mirian Jorge Warde (1990) denominou de
presentismo pragmatista, ou seja, ao fato de que a
história da educação não foi instituída como especialização
temática da história, mas como ciência da
educação ou como ciência auxiliar da educação
(1990, p. 3-11).
Diana Gonçalves Vidal e Luciano Mendes de
Faria Filho (2003), em interessante artigo intitulado
“História da educação no Brasil: a constituição histórica
do campo (1880/1970)”, apresentam vários
elementos analíticos e críticos acerca dos caminhos
trilhados pela história da educação. Em primeiro lugar,
o histórico da disciplina a partir de três vertentes:
a tradição historiográfica do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro (IHGB); as escolas de formação
do magistério; a produção acadêmica, de 1940
a 1970. Tomando como ponto de partida a persistência
maior ou menor dessas três vertentes, vêm, em
segundo lugar, os trabalhos realizados nos últimos
vinte anos: temas e períodos, abordagens teóricas
mais recorrentes, características historiográficas,
sobretudo a liderança acadêmica do grupo mais ligado
a Laerte Ramos de Carvalho. Com o surgimento
dos programas de pós-graduação em educação, manifestou-
se a tendência a utilizar como referencial
teórico o marxismo de Althusser e, a seguir, de
Gramsci, fato este assinalado por Mirian Jorge Warde
e Marta Carvalho (2000). Empenhada em explicar o
presente e nele intervir, essa historiografia confirmou
o pragmatismo dos anos de 1930 e de 1940, e
consolidou a escrita de uma história da educação
presa ao presentismo pragmatista (idem, p. 25-26),
aliás, com um certo viés salvacionista em alguns
autores mais vinculados ao pensamento religioso ou
aos engajamentos políticos.
Durante a década de 1980 foram criados vários
grupos de trabalho de história da educação. Em 1984,
na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Educação (ANPEd), surgiu o GT História da
Educação, no qual se difundiram novos horizontes de
investigação na área, tais como a história das mentalidades,
o pós-estruturalismo e a história cultural. Em
1986 era criado o Grupo de Estudos e Pesquisas História,
Sociedade e Educação no Brasil, na Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), caracterizado
por um certo viés marxista de análise histórica.
Em 1999 foi criada a Sociedade Brasileira de Histó332
Francisco José Calazans Falcon
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006
ria da Educação (SBHE) e, em 2001, a Revista Brasileira
de História da Educação (Vidal & Faria Filho,
2003, p. 58-59). Tais iniciativas denotam não apenas
o crescente interesse por um campo específico – o da
história da educação –, mas têm também como conseqüência
uma preocupação dos pesquisadores com
os seus pressupostos teórico-metodológicos e, ainda,
a sua inserção nas perspectivas propriamente historiográficas.
Em busca de novos caminhos
Acredito já haver demonstrado que aquela primeira
impressão de ausência da história da educação
do ponto de vista da oficina do historiador precisa
ser relativizada pelas tendências mais recentes no
âmbito da história da educação. Todavia, persiste ainda
hoje um certo distanciamento que tem a ver tanto com
as heranças das separações disciplinares quanto com
a natureza mesma da história da educação. Estamos
aqui, ao que tudo indica, ante a diferença entre dois
tipos de histórias: as chamadas histórias de (histórias
de algo, ou seja, de determinado objeto), e as histórias
algo (adjetivadas, referidas a determinado aspecto
tido como inerente à história). No primeiro caso, para
exemplificar, temos a história da arte, da literatura,
da filosofia, das ciências, do direito, entre muitas outras,
inclusive, é claro, a história da educação. Todas
se intitulam de histórias, mas, na realidade, cada uma
delas está vinculada a um campo específico do conhecimento,
de tal maneira que a perspectiva histórica
constitui apenas um tipo possível de abordagem,
algo que se situa entre uma espécie de história aplicada
a determinados objetos e a visão que se supõe
histórica acerca do desenvolvimento de idéias ou teorias
ao longo de um eixo cronológico.
Já em relação ao segundo tipo de histórias, sua
razão de ser encontra-se provavelmente na própria
história da historiografia: após as concepções totalizadoras,
de origem iluminista, típicas das diversas histórias
universais legadas pelo século XIX (historicistas,
marxistas, positivistas), afirmou-se, desde o final
desse mesmo século, com o domínio da historiografia
ou metódica, uma espécie de divisão do trabalho
historiográfico: aos historiadores, a história política
(acontecimentos políticos, grandes líderes civis e militares,
diplomacia, guerras, instituições e idéias políticas);
aos demais, especialistas em outros campos da
realidade histórica, a história da arte, da literatura, da
filosofia, da ciência, da música, do direito, da educação,
entendidas como especializações acadêmicas e
científicas.
Assim, compartimentadas em saberes acadêmicos
disciplinados e institucionalizados, as chamadas
manifestações culturais passaram a constituir os objetos
de historiografias particulares, incomunicáveis
umas com as outras, organizadas cronologicamente e
com características meramente descritivas, factuais,
quase sempre ancoradas nas noções de influência,
sucessão, escolas e eras ou períodos ditos históricos
que pouco ou nada tinham a ver com a história dos
historiadores propriamente dita.
Essa é, evidentemente, uma visão um tanto simplificada
da história da história durante o século XX.
Para sermos mais exatos, porém, precisaríamos lembrar
o lento processo que levou à constituição de uma
história econômica independente da teoria econômica,
primeiramente na Grã-Bretanha e a seguir na França
e em outros países. Recordemos, por exemplo, que
a revista lançada por Marc Bloch e Lucien Febre, em
1929, origem da chamada École des Annales, chamava-
se Revue d’Histoire Économique et Sociale. Relegando
a um lugar secundário a historiografia dita positivista,
a Escola dos Annales enfatizou o econômico,
o social e o meio geográfico. Nos anos de 1960, quando
estava no seu apogeu a história dos analistas,
Frédéric Mauro (1969, 1975) sublinhou a necessidade
de uma autêntica história social que preenchesse
as lacunas então existentes, segundo ele, entre a dimensão
política e a econômica. Desenvolveram-se,
assim, as histórias das estruturas, dos movimentos
sociais e das mentalidades coletivas.
Essa idéia de algo como uma história em três dimensões,
ou de um real tridimensional, veio a ser
modificada, a partir de meados dos anos de 1970, pelo
advento da história cultural, ou seja, o reconhecimento
História cultural e história da educação
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 333
de uma outra dimensão ou característica inerente à
realidade histórica: a dimensão cultural.
Assim resumidamente descritas as origens quer
das abordagens ou dimensões da realidade histórica,
quer das disciplinas setoriais, como vem a ser o caso
da história da educação, fica evidenciado que tais disciplinas
possuem o caráter de disciplinas de intersecção
entre dois campos principais – no caso em tela,
entre o campo das ciências históricas e o das ciências
da educação. Permanece no ar o problema da autonomia
da história da educação em relação às ciências da
educação, sendo válido perguntar, com Solà (1995, p.
213): o que é a história da educação? História aplicada
aos fenômenos educativos ou teoria da educação,
quer dizer, exposição da ciência pedagógica por uma
forma histórica? Segundo esse mesmo autor, a história
da educação não se libertou ainda de seu antigo
lastro filosófico mesmo funcionando hoje, em geral,
nos departamentos de teoria e história da educação, o
que implica o fato de que seus pesquisadores e docentes
são, na maioria das vezes, universitários sem
formação histórica específica.
Em conseqüência desses elementos, tende-se a
esquecer com demasiada freqüência, na prática, que
[...] o sentido da história educativa não se esgota no
escolar, e que o educativo (e o escolar) fazem parte de uma
complexa engrenagem cultural e social. Passa-se por cima
da questão de que a história do fato educativo se inscreve
na história da cultura, da transmissão cultural, da formação
e reprodução de mentalidades e atitudes coletivas... Esquece-
se a vital inserção da história da educação na história da
sociedade tout court. (Solà, 1995, p. 215-216)
De fato, sublinha Solà, uma informação correta
e profunda de tipo histórico contextualizador é imprescindível
para a compreensão do sentido da práxis
humana e, dentro dela, da intervenção educativa.
Lima e Fonseca (2003) tenta examinar a questão
da história da educação do ponto de vista da historiografia
contemporânea, com ênfase na história cultural.
Tal como sublinhei na primeira parte deste trabalho,
a autora constata que a história social não é
considerada nem como campo de investigação, nem
como objeto ou abordagem nos debates envolvendo a
nova história, a história das mentalidades, a história
social e a história cultural. Aliás, no livro Domínios
da história (Cardoso & Vainfas, 1997), como já vimos,
há diferenças entre territórios ou áreas e campos
de investigação e linhas de pesquisa, cujos objetos
podem ser tratados à luz dos pressupostos
teórico-metodológicos daqueles. O mais interessante,
no entanto, é a constatação da autora: “a história
da educação não aparece nem como território, nem
como campo de investigação, sequer como tema”
(Lima e Fonseca, 2003, p. 52).
Assim, há necessidade de uma reflexão mais
sistemática sobre os argumentos que tentam sustentar
uma propalada autonomia da história da educação
como um campo historiográfico particular, ao lado
da história política, ou, como querem outros, da história
cultural. Na verdade, porém, a educação é um
tema/objeto de investigação necessário à compreensão
da formação cultural de uma sociedade (idem).
A história cultural na historiografia
contemporânea
Penso que esta talvez não venha a ser a oportunidade
mais adequada para apresentar as principais questões
conceituais e suas implicações historiográficas
do ponto de vista da história cultural.
Trabalho, desde 1990, com diversos aspectos da
história cultural e sei muito bem que não haveria como
retomar, aqui e agora, as inúmeras questões abrangidas
por esse campo da produção historiográfica na atualidade.
Vou, portanto, tão-somente apresentar algumas
breves indicações e comentários, tendo em vista
a problemática da história da educação.
1. Toda vez que se aborda o tema da história cultural
emerge obrigatoriamente, no âmbito do problema
das relações entre história e cultura, a indagação a
respeito das diferenças, ou não, entre história da cultura
e história cultural. O primeiro obstáculo aqui vem
a ser o conceito de cultura. Há então que se distinguir
entre a historiografia da cultura elaborada a partir dos
334
Francisco José Calazans Falcon
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006
pressupostos da Ilustração e aquela elaborada em função
de pressupostos antropológicos, na qual mais e
mais se destaca o caráter plural da noção de cultura e
sua multiplicidade de definições. Logo, é preciso reconhecer
que cultura constitui um nome aplicável a
um campo semântico e, como tal, em processo contínuo
de ampliação e complexificação (Falcon, 2002).
Denys Cuche (1999), ao analisar A noção de cultura
nas ciências sociais, percorre o longo itinerário
conceitual e metodológico que se inicia com a gênese
da palavra e da idéia de cultura, passa pela invenção
do conceito científico de cultura, em Edward B. Tylor
e Franz Boas, seu triunfo no século XX, e as diferentes
configurações mais ou menos recentes das variadas
acepções e relações construídas em função desse
mesmo conceito de cultura. Particularmente instigantes,
aliás, são o capítulo 4, sobre o “Estudo das relações
entre as culturas e a renovação do conceito de
cultura”, e o capítulo 5, intitulado “Hierarquias sociais
e hierarquias culturais”.
2. Uma das maneiras utilizadas pelos historiadores
do cultural para contornar as intermináveis discussões
a propósito dos objetos culturais que constituiriam
a matéria-prima da história cultural foi, ou
tem sido, a de pensar a história cultural como uma
certa forma de abordagem do real histórico e, ao mesmo
tempo, encarar a dimensão ou perspectiva cultural
como alguma coisa que está presente na economia,
na política e na sociedade como um todo.
Assim, entendendo-se o cultural como um certo
tipo de enfoque ou abordagem, ficaria de pé a idéia
da unidade da história – “só existe uma história”.
Logo, a ser aceito esse ponto de vista, a história cultural
equivale teoricamente às outras grandes divisões
da história – a econômica, a política e a social.
No lugar de objetos previamente definidos como culturais,
a história cultural contemplaria de fato o conhecimento
de uma dimensão do real.
Haveria assim uma diferença conceitual bastante
real entre história cultural e história da cultura, já
que esta última se definiria a partir de objetos – ou de
um único objeto, a cultura – reconhecidos como aqueles
pertencentes, ou inerentes, à própria idéia de cultura.
Logo, em lugar de um tipo de abordagem ou de
uma dimensão do real, tratar-se-ia do recorte de objetos
históricos reconhecidos como culturais.
Que não se trata de um simples jogo de palavras,
pode-se perceber com clareza, por exemplo, em
Gombrich (1994), quando se propõe a definir aquilo
que deveria ser uma verdadeira história cultural, em
oposição à “velha história da cultura”, autêntico obstáculo
epistemológico, segundo ele, no caminho da
construção necessária de uma “história cultural realmente
histórica”.
Peter Burke (2000), ao escrever sobre as Variedades
de história cultural, assinala o fato de que hoje
já existem muitos historiadores que preferem definirse
como historiadores culturais, algo talvez impensável
há alguns poucos anos. Ao mesmo tempo, a maioria
desses historiadores prefere trabalhar com
disciplinas setoriais em vez de escrever sobre culturas
totais – como reação à dependência da antiga história
cultural ao postulado da unidade ou consenso
cultural (tipo “espírito do tempo”, weltanschauung,
“civilizações” etc.). Outro exemplo desse tipo de crítica
a um conceito unitário de cultura é dado por
Thompson (1963, 1968) em seu conhecido estudo
sobre a formação da classe operária inglesa.
Afirma Schorske (1988) que, assim como é necessário
conhecer os métodos críticos da ciência moderna
para interpretá-la historicamente, também é preciso
conhecer os tipos de análise empregados pelos
estudiosos de humanidades para se poder abordar a
produção cultural não-científica do século XX. Mas
o historiador não partilha totalmente do objetivo do
analista de textos na área de humanas. Este visa o
máximo de elucidação de um produto cultural, relacionando
todos os princípios de análise com o seu
conteúdo particular. Já o historiador procura situar e
interpretar temporalmente o artefato, num campo no
qual se cruzam duas linhas. Uma é vertical, ou
diacrônica, com a qual ele estabelece a relação de um
texto ou um sistema de pensamento com expressões
anteriores no mesmo ramo de atividade cultural (pintura,
política etc.). A outra é horizontal, ou sincrônica;
com ela, o historiador avalia a relação do conteúdo
História cultural e história da educação
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 335
do objeto intelectual com as outras coisas que vêm
surgindo, simultaneamente, em outros ramos ou aspectos
de uma cultura. O fio diacrônico é a urdidura,
e o sincrônico é a trama do tecido da história cultural.
O historiador é o tecelão, mas a qualidade do tecido depende
da firmeza e cor dos fios. Ele tem de aprender
um pouco de fiação com as disciplinas especializadas,
cujos estudiosos, na verdade, perderam o interesse
de utilizar a história como uma de suas modalidades
básicas de entendimento – mas ainda sabem
melhor do que o historiador o que constitui, em seu
ofício, um fio resistente de cor firme (1988, p. 17). O
ponto de vista de Chartier (1990) a respeito da natureza
da história cultural foi expresso de uma forma
bastante sintética:
[...] trata-se de identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler, [sendo necessário] considerar
os esquemas geradores das classificações e das percepções
próprias de cada grupo ou meio como verdadeiras instituições
sociais, incorporando sob a forma de categorias mentais
e de representações coletivas as demarcações da própria
organização social. (p. 25, nota 45)
Afirma ele, ainda, que podemos
[...] pensar uma história cultural do social que tome
por objeto a compreensão das formas e dos motivos, isto é,
das representações do mundo social que, à revelia dos atores
sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente
confrontados e que, paralelamente, descrevem a sociedade
tal como pensam que ela é ou como gostariam que
fosse. (idem, ibidem)
Essas duas citações permitem-nos perceber que
estamos diante de duas concepções da história cultural:
uma que a associa a uma história da cultura orientada
para o recorte e a análise de objetos específicos
chamados objetos culturais – e aí entra, é claro, a distinção
entre cultura material e cultura imaterial (ou
espiritual); e outra que privilegia o critério dos pressupostos
metodológicos que têm em vista a abordagem
tanto das representações como das práticas sociais
de acordo com as concepções típicas das diversas
teorias sociais.
3. O conceito de história cultural também não se
encontra imune ao conflito dos sentidos: há quem
pense a história cultural nos moldes da velha oposição
historicista entre um mundo natural e um mundo
da cultura, ou humano, histórico por definição. No
bojo de algumas dessas interpretações, persiste, não
raro, uma associação do cultural ao espiritual ou mental,
fazendo-nos recordar as conhecidas distinções
oitocentistas entre uma alta cultura, ou cultura das
elites letradas, e uma cultura popular, iletrada, por
definição, e muito próxima, quando não mesmo idêntica,
das manifestações chamadas então folclóricas.
Já no território marxista, a história cultural ora
vem referida aos produtos e manifestações da cultura
material, ora se restringe ao estudo das formas de
consciência social, e aí entra em cena o problema da
ideologia. Muito comum, também, é a discussão segundo
pressupostos estruturais – e estruturalistas, mais
recentemente –, na qual se indaga se a cultura e o
cultural constituem ou não uma instância do real, sua
autonomia relativa e as relações que mantêm com as
outras instâncias do real.
História cultural ou histórias culturais?
De acordo com o conceito de cultura que se tenha
em vista, há pelo menos duas concepções básicas
acerca do campo de abrangência da história cultural:
a primeira delas define a história cultural como história
da cultura intelectual ou desinteressada, voltada
para as coisas do espírito, sinônimo talvez de história
intelectual, e muito próxima da antiga história das
idéias. Basicamente voltada para as formas textuais
em geral, essa história cultural identifica-se bastante
com a chamada alta cultura, ou cultura dominante.
Já no caso da segunda, porém, a história cultural
compreende tanto a cultura intelectual (ou do espírito)
quanto a cultura material, ou seja, a erudita e a
popular, a cultura científica, filosófica e artística, mais
sofisticada, e a cultura cotidiana, ou do senso comum.
336
Francisco José Calazans Falcon
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006
Freqüentemente, a alta cultura, enquanto cultura dominante,
é associada às chamadas elites ou classes
letradas, ao passo que a cultura cotidiana é vista como
a cultura popular, ou dominada.
Todas essas denominações e oposições vêm sendo
submetidas a críticas constantes. Para não poucos
historiadores, aliás, tais dicotomias culturais são demasiado
simplistas, reducionistas e irreais – tal como
se dá, por exemplo, com Roger Chartier (1990),
Jacques Revel (1989) e Carlo Ginzburg (1991) –, já
que a dinâmica das relações culturais e sociais tende
a misturar essas divisões e distinções aparentemente
tão homogêneas. Quanto aos autores marxistas, suas
críticas têm sido endereçadas a esse conceito supostamente
amplo de história cultural, mas que deixa de
fora praticamente toda a cultura material.
Trabalhar cada vez menos com um conceito único
de cultura ou com suas supostas oposições
dicotômicas parece ser a tendência entre os historiadores
do cultural.
Alguns problemas da história cultural
A historiografia contemporânea vem demonstrando
a realidade e a especificidade da história cultural.
No limite, aliás, já existem aqueles que admitem não
ser mais aceitável tentar pensá-la segundo os esquemas
explicativos que legitimam os demais campos
do conhecimento histórico, tal como acabo de fazer.
De qualquer modo, porém, é preciso ter em vista pelo
menos três coisas a respeito da história cultural:
1. A história cultural não deve ser encarada como
mais uma entre as diversas disciplinas históricas especializadas
e definidas em função das temáticas respectivas.
O cultural constitui um campo multi e interdisciplinar,
capaz de articular os temas e as questões mais ou
menos dispersos pelas disciplinas especializadas.
2. Ela não é apenas mais um tipo de enfoque ou
abordagem. Ao contrário de abordagens como a econômica,
a política, a social ou a intelectual, nas quais
o historiador recorta e destaca da totalidade histórica
certos tipos ou conjuntos de objetos relativamente
homogêneos, a história cultural vê-se sempre diante
da dificuldade de recortar objetos culturais. Daí podemos
perceber atitudes bastante diferenciadas entre
os historiadores diante da história cultural: há os que
definem o cultural como tudo aquilo não classificado
como econômico, político, social; mas há também
quem veja o cultural como uma dimensão transdisciplinar,
inerente ao próprio real, própria de todo o fazer
humano. Logo, não haveria como circunscrever o
cultural em termos de região ou nível, pois, a rigor,
ele faz parte de todos os níveis.
3. Não se trata apenas de um novo espaço ou
dimensão do real, distinto, separado e definido em
termos espaciais ou hierárquicos em relação aos demais
espaços, regiões ou níveis desse mesmo real.
Assim, chega-se a uma conclusão bastante interessante:
a história cultural não deveria ser apenas
uma denominação ou rótulo que se aplicaria a um
campo de estudos constituído de objetos e temas específicos.
A idéia de atribuir uma espécie de lugar
ao cultural em termos de realidade histórica, um lugar
situado entre o econômico, o político e o social,
talvez tenha tido sua razão de ser no começo da história
cultural. Hoje, todavia, sabe-se que esse lugar
não existe, assim como tampouco existe uma
alocação arquitetônica que permita dizer se a história
cultural está acima, abaixo, ou ao lado de outros
aspectos do real.
Objetos e métodos da história cultural
Afirma Georges Duby (1982, p. 14) que “a história
cultural tem como proposta observar no passado,
em meio aos movimentos de conjunto de uma civilização,
os mecanismos de produção dos objetos
culturais” (da produção vulgar à mais refinada).
Nas atas do Colóquio Franco-Húngaro de Tihany
sobre “Objeto e métodos da história da cultura”, realizado
em 1977, do qual participaram Duby, Le Goff,
Makkai e Kosary (os dois últimos historiadores húngaros),
ficaram registradas as seguintes indicações
temáticas (cf. Le Goff & Kopeczi, 1982):
História cultural e história da educação
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 337
a) Visões de mundo: sistemas de valores e de
normas ligados às necessidades econômicas,
sociais e políticas da sociedade, sua influência
sobre o conhecimento cotidiano, científico e
artístico e sobre as atitudes e modos de vida.
b) Política cultural: as concepções das diferentes
classes e camadas sociais e dos diversos
movimentos e correntes.
c) Atividades institucionais na difusão da cultura
material e intelectual (ensino, edição,
imprensa, rádio, televisão, igrejas e organizações
sociais; a língua como meio de comunicação).
d) Intelectuais: seu papel/função como difusores
da cultura e a sua realização/concretização.
e) Ciência: condições de existência, resultados
e funções no cotidiano, no desenvolvimento
da sociedade, da consciência cotidiana e das
ideologias.
f) Literatura e artes: condições de existência, resultados,
funções e influência sobre a consciência
cotidiana, as ideologias, as atitudes e
os modos de vida; a imagem da sociedade e
do homem em seus produtos.
g) Cultura material e intelectual da vida cotidiana
das diversas classes, camadas e grupos
sociais. Principais características.
h) Tradição e inovação cultural de uma época;
valores que se transmitem ou que desaparecem;
lugar do período em causa na evolução
global de determinado povo ou da humanidade.
Quanto aos métodos, Duby (1982, p. 14-17) sublinha
o conceito de produção cultural, pois, segundo
afirma, o historiador deve considerar o conjunto
da produção cultural e as relações que possam existir
entre os acontecimentos produzidos no topo do edifício
– como obra-prima – e essa base quase inerte da
produção corrente, pois, em geral, as disciplinas separadas/
especializadas permanecem ancoradas no
excepcional. Seria fundamental, segundo ele, elucidar
as relações existentes entre o movimento criador,
que arrasta a evolução de uma cultura, e as suas estruturas
profundas. Entre estas últimas estão situadas
as estruturas econômicas e suas conexões com os ritmos
da produção cultural em certas épocas.
Ainda segundo Duby, há também outros fatores,
não-econômicos, a considerar:
a) uma herança, um capital de formas de que
cada geração lança mão (formas literárias,
artísticas, filosóficas);
b) os fatores ideológicos, o papel do imaginário,
do sistema de valores, das imagens que
servem para explicar o mundo;
c) o fato de que não existe apenas uma cultura,
mas sim culturas, mesmo em sociedades pouco
evoluídas; logo, é importante não trabalhar
com as noções de povo e elite como se
fossem blocos homogêneos, ignorando-lhes
as estratificações e combinações variadas –
“os deslizamentos, passagens, interferências,
origens da complexidade do espaço cultural”
(apud Falcon, 2002, p. 100-102).
A título de conclusão
Segundo Jean-Pierre Rioux (in Rioux & Sirinelli,
1997, p. 17-18), é possível distinguir pelo menos quatro
blocos mais importantes no âmbito da história
cultural:
a) A história das políticas e das instituições culturais,
abrindo caminho ao estudo das relações
entre o político e o cultural (ideais, atores,
culturas políticas).
b) A história das mediações e dos mediadores, no
sentido estrito de uma difusão instituída de saberes
e de informações, mas também, em sentido
mais amplo, de inventário dos transmissores,
dos fluxos de circulação de conceitos, ideais
e objetos culturais; das maneiras à mesa, à escola,
do rito religioso à moda etc.
c) A história das práticas culturais, que não deve
ficar fechada em si mesma, sinônimo de um
338
Francisco José Calazans Falcon
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006
sociocultural sempre presente no horizonte de
pesquisa e levando a revisitar a religião vivida,
as sociabilidades, as memórias particulares,
as promoções identitárias e os usos e costumes
dos grupos humanos.
d) A história, enfim, dos signos e símbolos exibidos,
dos lugares expressivos e as sensibilidades
difusas, ancorada sobre os textos e as obras
de criação, sempre íntima, alegórica e emblemática,
valorizando as ferramentas mentais e
as evoluções dos sentidos, misturando os objetos,
as práticas, as configurações e os sonhos.
Sirinelli (2004) refere-se à síntese entre os dois
pólos possíveis de uma história cultural, concebida
ao mesmo tempo como história das representações
do mundo e como a das elaboradas
produções do espírito, desde os sistemas
de pensamento mais construídos até as sensibilidades
mais simples. Esses pólos delimitam
um campo de estudo, tendo por objeto tudo
aquilo que é dotado de sentido em um grupo
humano em uma certa data. Daí a validade da
definição proposta para a história cultural:
como os homens representam e representamse
no mundo que os cerca.
Referências bibliográficas
ARRUDA, José Jobson; FONSECA, Luís Adão (Orgs.). Brasil-
Portugal: história, agenda para o milênio. São Paulo/Portugal:
FAPESP/EDUSC/ICCTI, 2001.
BOUTIER, Jean; JULIA, Dominique (Orgs.). Passados recompostos;
campos e canteiros da história. Trad. Marcella Mortara e
Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1998.
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios
da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A configuração da historiografia
educacional brasileira. In: FREITAS, Marcos Cezar de
(Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto,
1998. p. 329-353.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações.
Lisboa: DIFEL, 1990.
CHARTIER, Roger; ROCHE, Daniel. O livro: uma mudança de perspectiva.
In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: novos
objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 99-115.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru:
EDUSC, 1999.
DUBY, Georges. Histoire des mentalités. In: SAMARAN, Charles
(Org.). L’histoire et ses méthodes. Paris: Gallimard, 1961. p. 937-966.
. Problèmes et méthodes en histoire culturel. In: LE
GOFF, Jacques; KOPECZI, Bela (Orgs.). Objet et méthodes de
l’histoire de la culture. Actes du Colloque Franco-Hongrois de
Tihany. Paris/Budapest: Éditions du Centre National de la
Recherche Scientifique/Akademiai Kiadó, 1982. p. 13-18.
FALCON, Francisco J. C. História cultural. Rio de Janeiro:
Campus, 2002.
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa:
Difel, 1991.
GOMBRICH, Ernest Hans. Para uma história cultural. Lisboa:
Gradiva, 1994.
HUNT, Lynn (Org.). A nova história cultural. Trad. Jefferson Luiz
Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LE GOFF, Jacques; KOPECZI, Bela (Orgs.). Objet et méthodes de
l’histoire de la culture. Actes du Colloque Franco-Hongrois de
Tihany. Paris/Budapest: Éditions du CNRS/Akademiai Kiadó, 1982.
LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: novas abordagens.
Tradução Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1976c.
. História: novos objetos. Trad. Theo Santiago. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1976a.
. História: novos problemas. Trad. Theo Santiago. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1976b.
LIMA E FONSECA, Thais Nivia de. História da educação e história
cultural. In: GREIVE, Cynthia Veiga; LIMA E FONSECA,
Thais Nivia de (Orgs.). História e historiografia da educação no
Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 49-75.
MAURO, Frédéric. Nova história e novo mundo. São Paulo: Perspectiva,
1969.
. Do Brasil à América. São Paulo: Perspectiva, 1975.
REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1989.
RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François. Pour une histoire
culturelle. Paris: Seuil, 1997.
História cultural e história da educação
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 339
SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São
Paulo: Ed. UNICAMP/Cia. das Letras, 1988.
SIRINELLI, Jean-François. Este século tinha sessenta anos: a França
dos sixties revisitada. Tempo Social, São Paulo: Revista de Sociologia
da USP, v. 8, n. 16, p. 14-17, jan./jun. 2004.
SOLÀ, Pere. El estúdio diacrónico de los fenómenos educativos y
las tendencias historiográficas actuales. In: CONGRESO INTERNACIONAL
“HISTÓRIA A DEBATE”, 1993, Santiago de
Compostela. Actas... Santiago de Compostela: Carlos Barros Editor,
1995. t. II, p. 213-220.
THOMPSON, Edward P. The making of the english working class.
Victor Gollancz, 1963, Pelican Books, 1968.
VIDAL, Diana; FARIA FILHO, Luciano Mendes de. História da
educação no Brasil: a constituição histórica do campo (1880/1970).
Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH, v. 23, n. 45,
p. 37-70, 2003.
WARDE, Miriam Jorge. Contribuições da história para a educação.
Em Aberto, Brasília: INEP/MEC, ano 9, n. 47, p. 3-11, jul./
set. 1990.
. CARVALHO, Marta. Política e cultura na produção
da história da educação no Brasil. Contemporaneidade e educação,
ano V, n. 7, p. 9-33, 1. set. 2000.
FRANCISCO JOSÉ CALAZANS FALCON, livre-docente
em história moderna pela Universidade Federal Fluminense
(UFF), professor titular aposentado da mesma universidade, assim
como da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio),
é atualmente professor do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Salgado de Oliveira. Trabalhos publicados:
A época pombalina (São Paulo: Ática, 1982), Mercantilismo
e transição (São Paulo: Brasiliense, 1982); Iluminismo (São
Paulo: Ática, 1986); Tempos modernos: ensaios de história cultural
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000); História
cultural (Rio de Janeiro: Campus, 2002); A formação do mundo
moderno (Rio de Janeiro: Campus, 2006), os dois últimos em
colaboração com Antonio Edmilson Martins Rodrigues. Pesquisas
em andamento: “Historiografia brasileira: a época cientificista
– Capistrano de Abreu”; “Teoria da historiografia contemporânea;
as historiografias modernas e pós-modernas”. E-mail:
prof@franciscofalcon.com.br
Recebido em novembro de 2005
Aprovado em fevereiro de 2006
Resumos/Abstracts/Resumens
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 32 maio/ago. 2006 375
especialidad cultural, que marca a la
escuela xakriabá.
Palabras claves: educación indígena;
cultura escolar; antropología de la
educación
Francisco José Calazans Falcon
História cultural e história da
educação
O artigo analisa a separação entre a
história cultural e a história da educação.
Examinando obras a partir dos
anos de 1970, verifica a importância
crescente da história cultural e a ausência
quase completa de trabalhos
relativos à história cultural da educação.
Aborda questões disciplinares e
institucionais, mas também
historiográficas, que concorrem para
a exclusão de determinadas disciplinas,
como a história da educação, do
âmbito de trabalho do historiador.
Durante a década de 1980, detecta
maior interesse pela história da educação
e por sua inserção nas perspectivas
historiográficas. Focaliza algumas
questões que interessam aos
historiadores e aos historiadores da
educação: as relações entre história e
cultura; a tentativa de considerar a
história cultural em duas perspectivas:
uma que lhe atribui o recorte e
análise de objetos culturais, e outra
que privilegia os pressupostos metodológicos,
abordando tanto as práticas
sociais como as suas representações,
de acordo com concepções das
diversas teorias sociais. Conclui que
a história cultural é um campo multi
ou interdisciplinar, não apenas um
tipo de abordagem, nem apenas um
novo espaço ou dimensão do real, e
enfatiza a necessidade de uma reflexão
mais sistemática sobre a educação
como um tema/objeto de investigação
necessário à compreensão da
formação cultural de uma sociedade.
Palavras-chave: história cultural;
história da educação
Cultural history and the history of
education
The article analyses the separation
between cultural history and the history
of education. It verifies the growing
importance of cultural history and the
almost complete absence of studies on
the cultural history of education based
on an examination of works starting in
the 1970s. It deals with disciplinary,
institutional and historiographic
questions which contribute to the
exclusion of determined subject areas
like the history of education in the ambit
of work of the historian. It detects a
greater interest in the history of
education during the 1980s, and in its
insertion in historiographic
perspectives. It focuses on some
questions which are of interest to
historians and historians of education:
the relation between history and
culture; the attempt to consider cultural
history from two perspectives – one
which attributes to it the separation
and analysis of cultural objects and the
other which privileges methodological
presuppositions dealing with both social
practices and their
representations, in accordance with
conceptions from diverse social
theories. It concludes that cultural
history is a multi or interdisciplinary
field, not simply a kind of approach
nor a new space or dimension of
reality and emphasizes the need for a
more systematic reflection on education
as a theme/object of investigation
necessary for understanding the cultural
formation of a society.
Key-words: cultural history; history of
education
Historia cultural y historia de la
educación
El artículo analiza la separación entre
la historia cultural y la historia de la
educación. Examinando obras a partir
de los años de 1970, se verifica la
importancia creciente de la historia
cultural y la ausencia casi completa de
trabajos relativos a la historia cultural
de la educación. Aborda cuestiones
disciplinares e institucionales, pero
también historiográficas, que
concurren para la exclusión de determinadas
disciplinas, como la historia
de la educación, del ámbito de trabajo
del historiador. Durante la década de
1980, detecta un mayor interés por la
historia de la educación y por su
inserción en las perspectivas
historiográficas. Focaliza algunas
cuestiones que interesan a los historiadores
y a los historiadores de la
educación; las relaciones entre
historia y cultura; la tentativa de considerar
la historia cultural bajo dos
perspectivas; una que le atribuye el recorte
y análisis de objetos culturales, y
otra que privilegia los presupuestos
metodológicos, abordando tanto las
prácticas sociales como sus
presentaciones, de acuerdo con
concepciones de las diversas teorías
sociales. Concluye que la historia cultural
es un campo multi o interdisciplinar,
no apenas un tipo de abordage, ni
apenas un nuevo espacio o dimensión
de lo real, y enfatiza la necesidad de
una reflexión más sistemática sobre la
educación como un tema/objeto de
investigación necesario a la
comprensión de la formación cultural
de una sociedad.
Palabras claves: historia cultural;
historia de la educación
Luiz Felipe Baêta Neves
História intelectual e história da
educação
O texto começa por tratar do uso anacrônico
de palavras e idéias. Tal uso
caracteriza-se por uma rigidez na interpretação
da linguagem, que acaba por
se fixar nos significados correntes na
época em que se escreve a história.
Essa reificação do discurso tende a desconsiderar
as possíveis significações

Nenhum comentário:

Postar um comentário