domingo, 18 de outubro de 2009

A EDUCAÇÃO NA FRANÇA ILUMINISTA:

Revista HISTEDBR On-line Artigo
Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.25, p.44 –53 ,mar. 2007 - ISSN: 1676-2584
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A EDUCAÇÃO NA FRANÇA ILUMINISTA: VOLTAIRE E O ENSAIO SOBRE A
MORAL E OS COSTUMES DOS POVOS
Djaci Pereira Leal (PPE/UEM)
Terezinha Oliveira
Universidade Estadual de Maringá - UEM
RESUMO:
Com este artigo busca-se analisar as influências do pensamento de Voltaire na educação da
sociedade francesa do século XVIII. A obra referencial deste estudo é o Ensaio sobre a
moral e os costumes dos povos, na qual Voltaire analisa historicamente a construção das
instituições Igreja e Estado. Destaque-se que nessa obra encontramos uma concepção
distinta das demais obras do autor em relação à Idade Média. Em seu Ensaio, Voltaire
ressalta a importância das relações medievais para a construção da nação moderna
francesa, fato que não ocorre em outros escritos do autor, uma vez que neles prevalece sua
pena ferina contra a permanência de instituições do Antigo Regime. Duas questões são
enfocadas neste trabalho em relação à compreensão da obra de Voltaire. A primeira referese
às diferenças de interpretação em relação ao medievo nas obras deste autor. A segunda
incide sobre o caráter educativo desta obra, em especial as características referentes às
heranças culturais medievais da sociedade francesa do século XVIII.
Palavras Chave: História da Educação, Iluminismo, Idade Média, Voltaire.
THE EDUCATION IN FRANCE ILLUMINIST: VOLTAIRE AND THE ESSAY ON
THE MORAL AND THE CUSTOMS OF THE PEOPLE
ABSTRACT:
This article seeks to analyze the influences of Voltaire’s thought about education in the
French society of century XVIII. The reference book for this study is "Essay on the moral
and the customs of the peoples", in which Voltaire historically analyzes the construction of
the institutions: Church and the State. It has been distinguished that in that work we find a
distinct conception from the others works of the author in relation to the Medieval Age. In
his Essay, Voltaire stands out the importance of the medieval relations for the construction
of the French modern nation. In fact, that does not occur in other writings of the author,
once it remains with his tough criticism against the permanence of institutions of the Old
Regimen. Two questions are focused in this work in relation to the comprehension of
Voltaire’s work. The first one mentions the differences of interpretation in relation to
medieval time in the work of this author. Secondly it happens on the educative character of
that work, in special the referring characteristics to the medieval cultural inheritances of
the French society of century XVIII.
Key-words: History of the Education, Illuminist, Medieval Age, Voltaire
O objetivo deste artigo é buscar na obra Ensaio sobre a moral e os costumes, de
Voltaire, o estudo que o autor faz do período medieval, sobretudo das instituições Igreja e
Estado. 1 O mesmo filósofo que adota como mote: Ecrasez l´Infâme!, uma postura
nitidamente anticlerical, é o que investiga, com profundidade, a formação e consolidação
da Igreja ao longo da Idade Média, percebendo as mudanças e transformações que sofrera
até chegar a se tornar l´Infâme a ser combatida no século XVIII 2.
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Segundo os estudiosos de Voltaire, o seu grande propósito era conquistar
ascensão social por intermédio da literatura. Como destaca Lepape3 ao mesmo tempo em
que a atividade literária é valorizada em virtude dos estímulos reais, as possibilidades de
aceitação dos escritores ainda estavam determinadas pela hierarquia social. Nesse sentido,
no século XVIII, não se poderia designar autor como uma profissão, pois o controle das
obras e permissão para divulgação das mesmas estava sob a autoridade real. Deste modo,
os autores não conseguiam sobreviver de suas atividades literárias.
Um outro aspecto que também precisa ser considerado sobre a situação dos
autores é que neste momento a relação entre a produção intelectual e o processo de
mercantilização da arte estava se tornando bastante conflituoso. Como apresenta Lepape
(1995, p. 65) não se pode ainda falar em autores, uma vez que os escritores não são
considerados donos de seus textos, ou seja, não têm reconhecida a autonomia da atividade
literária.
Em sua busca de prestígio como escritor, Voltaire fracassa na tentativa de
ganhar as graças de Luís XV. Segundo Lepape (1995, p. 49) não houve por parte de Luis
XV nem a aceitação da dedicatória, que Voltaire tentara atribuir-lhe na obra La Henriade.
Inclusive teve negada a autorização para publicação e comercialização de suas obras na
França.
Em 1726, Voltaire envolve-se em uma disputa com o cavaleiro de Rohan, o que lhe
rende um mês de prisão na Bastilha e a exigência de deixar a França. Isso ocorre mesmo
após o sucesso da montagem de suas peças “Édipo” e “Henriade”. Sobre o período de
exílio de Voltaire na Inglaterra pode-se afirmar que (LEPAPE,1995, p. 60) serviu a
Voltaire para perceber as diferenças entre a Inglaterra e a França. A acolhida que recebeu
na Inglaterra devida a uma vida intelectual mais tolerante, colocou-lhe o seguinte dilema:
construir sua carreira em Londres, ou, tentar retomar a carreira que fora interrompida em
Paris? Esse dilema reorientará Voltaire em relação ao papel de escritor e a finalidade de
sua obra.
Do exílio, na Inglaterra, Voltaire verá melhor a França, resultando na excelente
obra Cartas inglesas. Lutará ao longo de sua vida para poder retornar e, sobretudo, viver
em Paris. Nesse sentido, destaca Lepape (1995, p. 77) que
o caso Rohan, a Bastilha, a partida forçada, tudo isso o deixara
consciente da extrema precariedade da situação dos escritores na França
dos Bourbons. À mercê da arrogância de um menor, da antipatia de um
monarca de dezesseis anos, que nunca o tinha visto nem lido, mas que
era todo ouvidos para o seu confessor, Voltaire levava um pouco mais
longe essa reflexão: poderia um escritor viver feliz em uma monarquia
católica?
A partir dessa reflexão Voltaire, segundo expressão de Lepape (1995, p.
78), conheceu o conceito com o qual se ocuparia em suas obras: Tolerância. Tendo como
foco a tolerância e a possibilidade de conversar com o outro, o diferente, “começa-se a
esboçar-se a metamorfose do homem de letras em ‘filósofo’” (LEPAPE, 1995, p. 78).
A possibilidade de dialogar com aquilo que é diferente fornece a Voltaire
a tônica do enfoque que marcará a leitura que fará da história. René Pomeau, na introdução
ao Tratado sobre a Tolerância, destaca a preocupação histórica e educativa como enfoque
de Voltaire ao discutir a tolerância.
Voltaire não insiste (...) nos direitos da ‘consciência errante’.
Recorre a critérios exteriores. O valor supremo para ele é ‘o bem
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físico e moral da sociedade’ (...). ‘O interesse das nações’ exige a
tolerância, é isso que ele desenvolve através de um amplo
panorama histórico.
O pluralismo religioso da humanidade deve-se ao fato de que,
nessa matéria, ’a educação faz tudo’, pelo menos quase tudo.
(VOLTAIRE, 2000, p. xxiv-xxv)
A abordagem educacional em nosso artigo está relacionada ao
entendimento da educação como a exigência de formação do homem para a vida em
sociedade. Percebe-se que ao discutir a tolerância como possibilidade de conversar com
outros mundos e com isso possibilidade de fazer circular as idéias, a educação para
Voltaire é algo que se verifica no exercício diário das atividades que o homem realiza
mediante a observação e o diálogo com o diferente. É a educação que lhe possibilita
perceber-se e perceber a própria sociedade, ou seja, a reflexão e consciência de si mesmo.
Não se trata aqui, evidentemente, da educação institucional como, por exemplo, a escola
proporciona, mas da educação como a que ocorre e perpassa as relações sociais.
É com essa consciência de se aprender com e nas relações sociais que
Voltaire volta-se para a história e isso fica explícito no Ensaio sobre a moral e os
costumes. Essa obra, portanto, não faz parte do momento em que o autor procura ser
reconhecido na corte, mas do filósofo que busca entender a natureza humana a partir de sua
história e instituições. Para os pensadores do século XVIII, em particular para o autor em
tela, a história se torna uma ocupação necessária e condição sine qua non para o
entendimento e explicação das mudanças que estavam ocorrendo e, sobretudo, das
transformações que estavam por vir4.
Devido às preocupações específicas do século XVIII, não é mais possível
a produção histórica de antanho. Como afirma Souza (2001, p. 114) “[...] a história é para
Voltaire a trajetória da civilização, entendida aqui como o conjunto dos desenvolvimentos
produzidos pelo homem nas artes, nas ciências, nas técnicas, e, além disso, das
transformações espirituais e morais que acompanham esses desenvolvimentos”. É com
essa preocupação e interesse que Voltaire escreve suas obras, utilizando de discussões
históricas em muitas de suas obras literárias, que serviriam mais tarde para a composição
de obras nas quais se ocuparia mais detidamente da história.
Afirma Voltaire em carta de 26 de maio de 1742, a Frederico, o Grande,
após a vitória de Chotusitz:
J’aime peu les héros, ils font trop de fracas;
Je hais ces conquérants, fiers ennemis d’eux-mêmes,
Qui dans les horreurs des combats
Ont placé le bonheur suprême,
Cherchant partout la mort, et la faisant souffrir
A cent mille hommes leurs semblables.
Plus leur gloire a d’éclat, plus ils sont haïssables. 5
Voltaire demonstra aqui o espírito com o qual se ocupará dos grandes líderes da
história, ou seja, não apenas dos combates e das glórias que os mesmo conquistaram, mas o
que de fato contribuíram para o desenvolvimento da sociedade. Isto se evidencia em suas
obras História de Carlos XII e O Século de Luís XIV.
Nesse sentido, o empenho de Voltaire é o de uma história que retrate o espírito
dos tempos e das nações. Na introdução do “Ensaio sobre a moral e os costumes”, no
capítulo VI – “Dos usos e sentimentos comuns a quase todas as nações antigas”, afirma:
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La nature étant portout la même, les hommes ont dû nécessairement
adopter les mêmes vérités et les mêmes erreurs dans les choses qui
tombent le plus sont le sens et qui frappent le plus l´imagination. Ils sont
dû tous attribuer le fracas et les effets du tonnerre au pouvoir d´un être
supérieur habitant dans les airs. Les peuples voisins de l`Ocean, voyant
les grandes marées inonder leus rivages à la pleine lune, ont dû croire
que la lune étaite cause de tour qui arrivait au monde dans le temps de
ses différentes phases (VOLTAIRE, 1973, p. 10). 6
É possível a partir desta preocupação de Voltaire destacar que a educação tem o
papel de ajudar os homens a superarem a visão ingênua e mítica da natureza e da realidade.
Com isso, aparece um conceito muito importante para Voltaire: a tolerância. Constata que
a mesma só será possível a homens esclarecidos.
Quando se estuda Voltaire, pode-se cair em dois rótulos: o de anticlerical e o de
um filósofo de segunda grandeza. 7 O fato de reduzir toda a obra de Voltaire ao seu espírito
anticlerical é tão prejudicial quanto considerá-lo um filósofo menor.
Sabe-se que Voltaire adotou uma postura anticlerical ao longo dos últimos anos
de vida e das obras produzidas nesta época. Em sua obra Ensaio sobre a moral e os
costumes, investiga a formação e consolidação da instituição Igreja, para discutir o poder e
a influência da mesma em seus dias. 8
Nosso objetivo é entender o que autorizou Voltaire criticar, acusar e formular
novas teses em relação às instituições: Igreja e Estado, tendo como referência a obra O
Ensaio sobre a moral e os costumes e o estudo que nela faz do período medieval.
A crítica e as proposições de Voltaire tornam-se possíveis e viáveis aos seus
contemporâneos pelo fato de fundamentá-las em minucioso estudo da história. Entre as
críticas, destaca-se a literatura sobre os reis, que a seu ver, “[...] é absolutamente inútil, [...]
consiste em memórias, biografias, anedotas da corte, que se dedicam a descrever detalhes
fúteis, acontecimentos banais” (SOUZA, 2001, p. 104). Voltaire propõe ocupar-se apenas
de “histórias particulares de reis se tiverem um caráter exemplar” (SOUZA, 2001, p. 104),
ou seja, “aqueles que fizeram algum bem aos homens” (VOLTAIRE, 1958, p. 3).
O estudo que faz da Idade Média e de suas instituições como momento marcado
por mudanças e transformações será o foco para discutir e entender a obra de Voltaire e
situá-lo como pensador de seu próprio tempo, que como traduzira Kant (1724-1804) 9, o
dito horaciano sapere aude, teve coragem de fazer uso de sua própria inteligência! E o fez
de forma tão brilhante e coerente que a leitura de suas obras provoca uma diversidade de
sentimentos. Sobretudo, o uso que fará da literatura para a divulgação da Filosofia e da
ciência. Como destaca Lepape (1995, p. 78)
[...] o encontro com a obra de Newton iria acelerar o processo
[metamorfose do homem de letras em filósofo]. Mesmo a física mais
moderna, mais profunda e mais revolucionária podia ser compreendida e
transmitida, em toda sua amplitude e em todas suas conseqüências, por
um espírito ávido de esclarecimento. E era justamente pelo uso adequado
da literatura que ela poderia ser transmitida a todos.
Pode-se destacar uma diferença entre Voltaire e Montesquieu pelo fato de este
ocupar-se ainda com uma história política, sobretudo na obra Do Espírito das Leis. Porém,
cabe ressaltar que Montesquieu e Voltaire buscam, influenciados pelo pensamento
newtoniano, as leis gerais que regem as sociedades humanas.
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Montesquieu, ao enfocar as leis, o governo e o Estado, preocupa-se em
demonstrar as instituições humanas como construção social e, portanto, fruto de um
determinado tempo. É isso o que as torna úteis e necessárias em sua época e, ao mesmo
tempo, obsoletas em outra. Mais que obsoletas, impraticáveis, como se percebe na
afirmação: “A servidão não era, portanto, uma coisa particular para os romanos, nem a
liberdade e a nobreza uma coisa particular para os bárbaros” (MONTESQUIEU, 1973, p.
487).
Outro aspecto que destaca é o fato de que é preciso olhar às instituições em sua
época com cuidado para não pensá-las como meras reproduções de tempos ou povos
anteriores, pois isso nega a historicidade das mesmas, bem como o homem como sujeito
histórico. São equívocos de interpretação, leitura e até mesmo de tradução. Diz ele:
[...] encontrando essa palavra [census] nos escritos daqueles tempos,
pensaram que o que se chamava census era precisamente o imposto dos
romanos; e tiraram disso a conseqüência de que nossos reis das duas
primeiras raças se haviam colocado no lugar dos imperadores romanos, e
não tinham modificado nada em sua administração (MONTESQUIEU,
1973, p. 487).
Em relação ao alerta de Montesquieu a respeito de equívocos na interpretação
que se faz dos conceitos, uma primeira ressalva que destacamos é em relação ao conceito
de educação, que, para nós, com a universalização da escola, confunde-se com educação
escolar. Destacamos que Voltaire, ao discutir educação o faz em um contexto social, ou
seja, o das próprias relações sociais.
Em suas obras é comum destacar o que se espera do homem como, por
exemplo, no conto O homem dos quarenta escudos, quando o personagem principal
afirma: “[...] e começo a refletir, coisa bastante rara na minha província” (VOLTAIRE,
1995, p. 364). Ou ainda no diálogo entre o homem dos quarenta escudos e o geômetra:
“Passa-se a vida a esperar e morre-se. Adeus, o senhor me esclareceu, mas tenho o coração
partido [diz ele]. [Ao que responde o geômetra:] É muitas vezes o fruto da ciência”
(VOLTAIRE, 1995, p. 376).
No mesmo conto, Voltaire orienta como estar preparado para viver na
sociedade, ao afirmar: “Desconfie, toda a vida, dos testamentos e dos sistemas”
(VOLTAIRE, 1995, p. 380). Destaque-se que nesse conto, Voltaire estabelece uma
discussão com a fisiocracia, mostrando ao longo das conversações do Homem dos
quarenta escudos os equívocos das proposições dos teóricos fisiocratas, sobretudo, os de
seu maior representante, François Quesnay (1694-1774). Expressa Voltaire sua luta
renhida contra toda e qualquer forma de dogmatismo, inclusive o filosófico.
Voltaire, no Ensaio sobre a moral e os costumes, alerta para o fato de que, ao
observar os costumes dos príncipes, também se julga os costumes e ações da população.
Ao referir-se aos príncipes mostra suas ações e costumes como reflexo de seu tempo e
cultura. Diz Voltaire a respeito de Clovis:
La curiosité des hommes, qui pénètre dans la vie privée des princes, a
voulu savoir jusqu´au detail de la vie de Charlemagne, et jusqu´au secret
de ses plaisirs. On a écrit qu´il avait poussé l´amour des femmes jusqu´à
jouir de ses propres filles. On en a dit autant d´Auguste ; mais
qu´importe au genre humain le détail de ces faiblesses qui n´ont influé
en rien sur les affaires publiques ? (VOLTAIRE, 1878, p. 77) 10.
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Ressalte-se que a idéia de civilização está diretamente relacionada à de razão, já
que se defende que os homens são iguais em todos os lugares pelo fato de serem racionais.
No verbete Igualdade, do Dicionário Filosófico, Voltaire a apresenta como fruto da razão e
as instituições como fruto da mesma razão. É a razão, portanto, o que iguala e desiguala os
homens, já que em função de viverem em sociedade, a organização social, fruto da razão
humana, faz com que surjam as classes, a divisão social do trabalho, a propriedade, as leis,
o Estado. Voltaire alerta para o fato de que o problema não é a desigualdade, mas sim a
dependência.
A discussão da igualdade em Voltaire aproxima-o de Aristóteles, na Política,
onde o mesmo apresenta os papéis e as classes sociais justificando-as a partir da razão.
Que é que deve um cão a outro cão, e um cavalo a outro cavalo? Nada.
Nenhum animal depende de seu semelhante; mas por que o homem
recebeu da Divindade um raio de luz que se chama razão, qual é o fruto
disso? É ser escravo em quase toda a terra. [...]
[...] é impossível que os homens que vivem em sociedade não estejam
divididos em duas classes: a dos ricos, que governam, e a dos pobres,
que servem [...] (VOLTAIRE, 1973, p. 223).
Ao se ocupar da história, Voltaire investiga a religião, a ciência, a filosofia e a
arte, ou seja, o conhecimento que os homens elaboraram e que tornou possível a
convivência entre eles, ou seja, a formação de uma sociedade: suas instituições, crenças,
filosofia, arte e ciência. 11 Nesse sentido, se pode afirmar que a educação é a base da
formação da sociedade, ou seja, é a partir da educação que se estruturam as instituições
sociais. Daí a preocupação de Voltaire com a necessidade de esclarecimento dos homens,
para que sejam possíveis as transformações que já se vislumbram na sociedade francesa no
século XVIII.
Segundo Paul Hazard (apud LOPES, 2004, p. 16), no tempo de Voltaire a
história preocupava-se em
[...] não [...] ser indiferente às ações humanas; é necessário que ela
mostre a derrota do vício e o triunfo da virtude, os bons sempre
recompensados, os maus sempre punidos: eis o que tinham repetido os
pais e os avós, e a geração posterior a 1715 não renegara a herança;
limitava-se a modificá-la ... Em vez de dar a sua lição aos súditos, a
história dirigi-la-ia a esses infortunados que chamamos príncipes [...].
Percebe-se que tanto Montesquieu quanto Voltaire se preocuparam em observar
as leis que regulam a sociedade, assim como Newton o fez para o mundo físico, porém
buscaram entender como a sociedade do século XVIII chegou ao estágio de
desenvolvimento e organização em que está. De acordo com a observação metodológica de
Montesquieu, ou seja, o de não transportar para séculos remotos as idéias do século que se
vive, discutem o que as sociedades fizeram e não o que deveriam ter feito. Demonstram
que na sociedade do século XVIII existem equívocos em função de leituras enviesadas que
foram feitas do passado, pois, como afirma Montesquieu: “nada retarda mais o progresso
dos conhecimentos do que uma obra má de um autor célebre, porque cumpre, antes de
ensinar, começar por dissipar o erro” (MONTESQUIEU, 1973, p. 495).
Ernst Cassirer (1994, p. 296) afirma que para Voltaire “a história não é um fim,
mas um meio, um instrumento de educação e de instrução do espírito humano”. Destaquese
que a obra Ensaio sobre a moral e os costumes é a que fundamenta toda a obra de
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Voltaire, sobretudo as teses que lhe são mais caras em sua prática política: a tolerância 12 e
a liberdade de expressão. 13 Isto pelo fato de ao fazer o estudo das diversas nações e povos
constatar que mesmo com diferenças radicais em relação a outras nações e povos, os
homens viveram em harmonia quando foram capazes de valorizar o que os igualava, ou
seja, a razão e não o que os diferenciava: os costumes, as leis, a moral e a religião.
Ao comentar a iconoclastia e a disputa entre a Igreja do Ocidente e do Oriente,
um dos motivos do Cisma, diz Voltaire: “Enfin, cette pratique piense dégénéra em abus,
comme toutes les choses humaines” (VOLTAIRE, 1878, p. 74)14.
Constata-se que para Voltaire a razão é fundamental para a superação de
preconceitos e de antigas relações de poder existentes na sociedade francesa em sua época.
Como autor e filósofo racionalista que é, apresenta a importância da leitura para o
enobrecimento dos homens: “Leiam, esclareçam-se; só pela leitura se fortifica a alma”
(VOLTAIRE, 1995, p. 400). E de forma bem explícita apresenta o conceito fundamental
para o Século das Luzes: a razão. Sugere que não é qualquer razão que leva ao
desenvolvimento do homem e da sociedade, é preciso que esteja vinculada a experiência e
a tolerância. Diz Voltaire (1995, p. 408): “Parece [...] que a Razão viaja por pequenas
etapas do norte para o sul, com suas duas amigas intimas, a Experiência e a Tolerância.
Acompanham-na a Agricultura e o Comércio”.
Destaca-se que não há da parte de Voltaire uma crença absoluta na razão e nem
nos estágios de desenvolvimento da sociedade francesa do século XVIII, pois como
afirma:
[...] hoje, neste século que é a aurora da razão, algumas cabeças de hidra
do fanatismo ainda renascem. [...] Qualquer um que busque a verdade se
arrisca a ser perseguido, devemos permanecer ociosos nas trevas? Ou
acender uma tocha na qual a inveja e a calúnia acenderão as suas?
Quanto a mim, creio que a verdade não deve esconder-se destes
monstros, muito menos abster-se de alimento com medo de se envenenar
(VOLTAIRE, apud SOUZA, 2001, p. 150).
A título de conclusão pode-se retomar uma série de questões tratadas por
Voltaire e que seriam uma lição para a nossa época. Uma delas é a importância da leitura,
pois somente por meio dela os homens podem alcançar a razão, o que os torna iguais por
aquilo que eles têm de mais sublime. Inclusive a necessidade de desenvolver uma leitura
que assegure o estudo de outras épocas e autores discutindo-os de forma contextualizada
para não incorrer em anacronismos. Mas a grande lição que Voltaire pode nos ensinar, sob
o ponto de vista da educação, é que ele percebeu as mudanças ocorridas na sociedade e,
por conseguinte, soube em que ponto atacar. Ou seja, em Voltaire transparece a capacidade
de entender o presente e discuti-lo a partir da leitura que fez da historicidade das idéias e
instituições francesas que estavam abaladas, em virtude das transformações pelas quais
passava a sociedade. Afastando-se de qualquer postura sectária soube ver na Tolerância a
virtude que deve ser cultivada por um povo que realmente pretende ser civilizado. Com sua
acuidade em relação às mudanças que sofria a França de então, Voltaire destacou-se pela
capacidade de discuti-las em diálogo com seus pares com o intuito de contribuir para o
desenvolvimento da sociedade francesa. Acima de tudo, dialogou e respeitou o diferente
com vistas ao bem comum.
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Notas
1 É importante destacar que as duas instituições são as que exercem o papel de destaque
em relação à educação ao longo da medievalidade, sobretudo a Igreja.
2 “Ademais nunca se deve temer que algum sentimento filosófico possa prejudicar a
religião de um país. Por mais que nossos mistérios contrariem suas demonstrações, nunca
deixam de ser reverenciados pelos filósofos cristãos, pois sabem que os objetos da religião
e da Filosofia são de natureza diferente. Nunca os filósofos farão uma seita religiosa. Por
quê? Porque não escrevem para o povo e porque não são entusiastas”. (Voltaire, 1973, p.
28-29)
3 “No início do século, de cada três autores um pertencia à Igreja; o quarto à nobreza. A
quarta parte formada pelos nobres era a mais numerosa na área da literatura: os aristocratas
animavam os salões, e, movidos pelo impulso vindo de Versalhes, ditavam o gosto em
matéria de letras. Por volta de 1780, os eclesiásticos representavam menos de um terço dos
autores; os nobres quinze por cento; e a plebe laica, mais da metade. O grupo social dos
escritores, que por ocasião da morte de Luís XIV ainda era inteiramente dominado pelos
valores da nobreza, da vida cortezã e da educação religiosa, iria passar por uma grande
mudança sociológica, que modificaria tanto a sua auto-imagem quanto a sua função na
sociedade (LEPAPE, 1995, P. 68)”.
4 “Atualmente usa-se a história de um modo muito esquisito. Desenterram-se constituições
suspeitas e mal compreendidas, datando da época de Dagoberto, e quer-se que voltem a
vigorar mais os costumes, os direitos e as prerrogativas de antanho (VOLTAIRE, 1973, p.
213)”.
5 “Gosto pouco dos heróis, são barulhentos demais./ Detesto esses conquistadores, altivos
inimigos de si mesmos, / que nos horrores dos combates / colocam a felicidade suprema,/
buscando por toda parte a morte, e fazendo-a sofrer / a cem mil homens seus semelhantes. /
Quanto mais refulge a glória deles, mais abomináveis são
(http://perso.wanadoo.fr/dboudin/VOLTAIRE/36/1742/1505.html, acessado em
29/04/2006)”. (tradução nossa)
6 “A natureza é para todos a mesma, os homens deveriam necessariamente adotar as
mesmas verdades e os mesmos erros nas coisas que estão sobre seus sentidos e que toquem
a sua imaginação. Eles deveriam todos atribuir o estrondo e os efeitos do trovão ao poder
de um ser superior que habita as alturas. Os povos visinhos do oceano viram as grandes
marés inundarem suas praias em lua cheia, passaram a crer que a lua é a causa de tudo o
que acontece ao mundo durante suas diferentes fases (VOLTAIRE, 1878, p. 10)”.
(tradução nossa)
7 Segundo André Versaille (Apud LOPES, 2004, p. 31), “Voltaire está, hoje, ejetado do
templo da Filosofia... Talvez encontraremos a resposta resposta (sic) na ideologia: a direita
católica não lhe perdoa seu anticlericalismo; a esquerda seu elogio ao luxo e seu
capitalismo; os nacionalistas o têm por cosmopolita; os crentes o classificam entre os ateus,
que suportam mal seu deísmo. Apenas seu estilo é unanimemente louvado ... o charme da
escrita será tão mais valorizado quanto o pensamento será denegrido”.
8 Parafraseando Quentin Skinner (apud LOPES, 2004), enquanto os demais filósofos
continuaram a pensar a partir da interpretação de obras e autores consagrados, Voltaire
preocupa-se em estabelecer os vínculos entre as teorias e a vida.
9 Em Resposta à pergunta: O que é o Iluminismo? (3 dez. 1783) afirma Kant: “Se, pois,
fizer a pergunta – Vivemos nós agora numa época esclarecida? – a resposta é: não. Mas
vivemos numa época do Iluminismo. Falta ainda muit para que os homens tomados em
conjunto, da maneira como as coisas agora estão, se encontrem já numa situação ou nela se
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possam apenas vir a pôr de, em matéria de religião, se servirem bem e com segurança do
seu próprio entendimento, sem a orientação de outrem. Temos apenas claros indícios de
que se lhes abre agora o campo em que podem actuar livremente, e diminuem pouco a
pouco os obstáculos à ilustração geral, ou à saída da menoridade de que são culpados.
Assim considerada, esta época é a época do Iluminismo (KANT, s/d, p. 17)”.
10 “A curiosidade dos homens, em conhecer a vida privada dos príncipes, querem saber até
o detalhe da vida de Carlos Magno, e até o segredo de seus prazeres. Alguém escreveu que
ele possuíra o amor das mulheres mais que de seus próprios filhos. Alguém o declarara
Augusto; mas que importa ao gênero humano o detalhe destas tendências que não influem
em nada sobre os seus negócios públicos? (VOLTAIRE, 1878, p. 77)”. (tradução nossa)
11 “Dividi o gênero humano em vinte partes: dezenove trabalham manualmente e nem
sabem que Locke existe. Na vigésima, quão poucos os que lêem! E entre estes, vinte lêem
os romances, enquanto apenas um estuda filosofia. O número dos que pensam é
excessivamente pequeno e não têm a lembrança de perturbar o mundo”. (Voltaire, 1973, p.
29)
12 “O que é a tolerância? É o apanágio da humanidade. Somos todos cheios de fraquezas e
de erros; perdoemo-nos reciprocamente as nossas tolices, tal é a primeira lei da natureza
(VOLTAIRE, 1973, p. 296)”.
13 “Quero dizer que se Tibério e os primeiros imperadores dispusessem de dominicanos
que houvessem impedido os primeiros cristãos de usar penas e tinta; se durante tanto
tempo não tivesse sido permitido pensar livremente no império romano, tornar-se-ia
impossível aos cristãos estabelecer os seus dogmas. Portanto, se o cristianismo só se
formou pela liberdade de pensamento, por que contradição, por que injustiça desejaria
aniquilar essa liberdade sobre a qual está fundado? (VOLTAIRE, 1973, p. 246)”.
14 “Enfim, esta prática, penso, degenerara em abuso, como todas as coisas humanas
(VOLTAIRE, 1878, P. 74)”. (tradução nossa)
Referências
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Recebido em 05 de março de 2007.
Aprovado em 22 de março de 2007.

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