domingo, 18 de outubro de 2009

IGREJA, EDUCAÇÃO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLONIAL

IGREJA, EDUCAÇÃO E ESCRAVIDÃO
NO BRASIL COLONIAL
Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro *
RESUMO:
A partir de uma perspectiva de longa duração acerca da “História do Brasil Colonial”, refletimos
sobre algumas peculiaridades das idéias pedagógicas dominantes – e da literatura a elas pertinente
como catecismos, cartilhas e manuais escolares –, reveladoras da mentalidade, da cultura e,
sobretudo, de modalidades de educação escolar ministradas no período colonial, nas terras do
Brasil. Os catecismos destinavam-se ao propósito evangelizador de ensinamentos cristãos. As
cartilhas e manuais escolares destinavam-se aos ensinamentos e à aprendizagem das primeiras
letras, da aritmética e, acima de tudo, da religião católica. Refletimos, prevalentemente, sobre os
Exercícios Espirituais, as Constituições da Companhia de Jesus e a Ratio Atque
Institutio Studiorum Societatis Iesu, correlacionando estes documentos com os caminhos
que a Companhia seguiu, desde Inácio de Loyola até a supressão da Ordem em 1773, e a
influência desses documentos na proposta educacional dos Jesuítas.
PALAVRAS-CHAVE: Brasil Colonial. Cartilhas. Catecismos. Educação Jesuítica.
INTRODUÇÃO
Conhecer a educação no Brasil colonial significa conhecer, além dos
aspectos econômicos, políticos, administrativos, sociais, culturais e religiosos, o
pensamento pedagógico e a ação educativa daquele período. Mais do que isso,
Politeia: Hist. e Soc. Vitória da Conquista v. 7 n. 1 p. 85-102 2007
* Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutora em Educação pela Universidade
Federal da Bahia (Ufba). E-mail: apcasimiro@bol.com.br; casimiro@uesb.br.
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significa ir buscar na Península Ibérica e em Portugal medieval e renascentista
as suas origens e destacar as especificidades do espaço colonizado, desde os
primórdios, com formas de cultura nativa e africana.
Essa parte da história da educação brasileira começa com a chegada
dos primeiros jesuítas, em 1549, e termina com a chegada de D. João VI
ao Brasil, em 1808. Salvaguardadas algumas diferenças, pressupõe fases
cronológicas correlacionadas intimamente com os acontecimentos da
metrópole. Devemos levar em conta o modo como se constituiu o sistema
social, tanto em Portugal como em suas colônias, em uma época em que todas
as decisões de caráter religioso dependiam do rei em virtude do instituto do
“Padroado”,1 que conferia ao monarca o lugar de chefe da Igreja. O direito
do Padroado identificou-se com os “direitos” de conquista, determinando o
caráter evangelizador e colonizador do Brasil e direcionando o modelo cultural
e educacional. Logo, como parte mais importante da sociedade colonial,
obrigando, punindo, doutrinando e educando, estiveram, sempre, agentes da
religião católica, que permeavam todas as camadas sociais e infiltravam-se na
vida material e espiritual do povo, de forma obrigatória e com justificativas
legais, políticas e espirituais.
Pela diversidade de aspectos que envolvem o tema ora proposto,
poderíamos dividir os enfoques da Educação colonial de várias maneiras:
primeiramente, por ordem cronológica: a) chegada e instalação das primeiras
ordens religiosas, no século XVI, período do qual cabe destacar os propósitos
dos jesuítas, de ensinar aos pequenos índios tanto as primeiras letras e o
Evangelho como rudimentos do ensino profissional;2 b) instalação das
ordens, no século XVII, principalmente da Companhia de Jesus que resultou
na construção dos primeiros colégios e na consolidação de um modelo
educacional; c) instalação de missões, cujo intuito, além da propagação da fé, era
o de garantir a posse da terra conquistada; d) o século XVIII, que testemunhou
o apogeu da organização dos jesuítas no início do século, suas vicissitudes,
sua expulsão no último quartel e, depois, a implantação de um novo modelo
cultural, que sobreviveu até o início do século XIX.
1 O direito do Padroado consistiu na delegação de poderes ao rei de Portugal, concedida pelos papas,
uma das quais uniu perpetuamente a coroa portuguesa à Ordem de Cristo, em 30 de dezembro de 1551. A
partir de então, o rei passou a ser, também, o patrono e protetor da Igreja, com as obrigações e deveres de
zelar pelas leis da Igreja; enviar missionários evangelizadores para as terras descobertas; sustentar a Igreja
nestas terras. O rei tinha também direitos decorrentes do Padroado como arrecadar dízimos e apresentar
candidatos aos postos eclesiásticos, sobretudos bispos, o que lhe dava um poder político muito grande, pois,
nesse caso, os bispos ficavam submetidos a ele (Fragoso, 2000, p.14).
2 Cf. Mattos (1958) e Leite (1938).
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Um segundo enfoque da educação colonial pode tomar como referência
os habitantes da colônia: a) os brancos, portugueses, filhos da elite, eram alvo
de uma educação formal, longa e diversificada, preparatória para o poder e/
ou para a vida eclesiástica. Essa educação era ministrada nos colégios, nos
seminários e na Universidade de Coimbra. Baseava-se em gramática, filosofia,
humanidades e artes, e completava-se com o estudo de cânones e da teologia.
Outros portugueses, pertencentes aos segmentos restritos das classes populares,
tinham acesso apenas aos rudimentos escolares: isto é, ler, escrever e contar; b)
para os índios e mestiços, a educação era ministrada nas missões, nos engenhos
e nas igrejas. A estes ensinava-se, precariamente, o catecismo preparatório
para o batismo, para a vida cristã, além de ofícios e tarefas servis que, naquele
tempo, por serem consideradas desonrosas, não podiam ser executadas pelos
brancos; c) os colonizadores desenvolveram, também, pedagogias para tratar
da educação/evangelização dos escravos. Ao lado disso, encetaram campanhas
pela humanização da escravidão e participaram da elaboração de leis canônicas
que garantissem tanto a evangelização dos escravos negros, como as normas
que deveriam direcionar o seu trato pelos patrões (Casimiro, 2002).
Ao lado dessas formas de educação, desenvolvidas nos colégios, missões
e senzalas, para o caso das mulheres, algumas ordens femininas começaram
a surgir no Brasil, principalmente a partir do século XVII. As primeiras
franciscanas (clarissas enclausuradas) chegaram à Baía de Todos os Santos no
dia 29 de abril de 1677 e, pouco tempo depois, construíram o Convento de
Santa Clara do Desterro em Salvador (Nascimento, 1994). Embora tivessem
chegado somente na segunda metade do século XVII, desde o final do século
XVI as famílias baianas já rogavam ao rei que mandassem freiras para fundarem
conventos e internatos para as suas filhas.
Ao lado do ensino formal, instituído pela Igreja e/ou pelo Estado,
a Colônia comportava um número significativo de pessoas que não se
enquadravam em nenhumas das categorias acima descritas, ou seja, indivíduos
que eram “desclassificados”.3 Faziam parte de uma realidade composta de filhos
de escravos domésticos, órfãos, crianças abandonadas, filhos ilegítimos (inclusive
filhos de padres), mestiços, negros alforriados etc., para os quais havia formas
de educação distantes do padrão vigente. Muitas dessas pessoas conseguiram
trabalho como aprendizes de oficiais mecânicos instalados e no comércio e,
3 Estudando a região mineradora no século XVIII, Laura de Mello e Souza (1982) introduz o conceito de
“desclassificados” para se referir aos que ficavam à margem da sociedade naquela época.
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no caso das mulheres, muitas aprendiam ofícios domésticos e engrossavam os
exércitos de doceiras, lavadeiras e quitandeiras que perambulavam pelas cidades
da Colônia. Devemos lembrar, ainda, a educação religiosa ministrada nos
conventos,4 irmandades, ordens terceiras,5 engenhos e paróquias. Essa educação
era severa e obrigatória. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
promulgadas em 1707, dedicam boa parte de seu Livro I a esta matéria, assim
como às regras e aos termos de compromisso de cada ordem, seus regimentos
e estatutos (Casimiro, 1996).
Além da Companhia de Jesus, outras ordens religiosas também foram
responsáveis por segmentos da educação colonial, como as ordens dos
carmelitas, mercedários e franciscanos. Além da formação dos seus próprios
quadros (nos conventos), essas ordens tinham sob sua responsabilidade
inúmeras missões, o ensino de primeiras letras e obras de catequese por
todo o Brasil (Jaboatão, 1859; Fragoso, 1992). Mas a Companhia de Jesus
conquistou mais segmentos do espaço colonial do que as demais ordens e,
com uma organização escolar mais “eficiente”, além de liderar o movimento
missionário, teve colégios espalhados por todo o Brasil e atuou por duzentos
e dez anos, até a sua expulsão em 1759. Ao lado da educação nos colégios, os
jesuítas desenvolveram um trabalho missionário consistente e duradouro por
todo o Brasil, principalmente nas regiões de fronteira (Fragoso, 1992).
Na metade do século XVIII, algumas obras inovadoras surgiram no
campo pedagógico português, como Apontamentos para a Educação de um
Menino Nobre (1734), de Martinho de Mendonça Pina e Proença e, nove anos
depois, O Verdadeiro Método de Estudar (1743), de Luís António Verney
(Fernandes, 1978, p. 69), com visíveis influências para a educação colonial.
Esses novos pensamentos pedagógicos foram, aos poucos, substituindo as
idéias escolásticas. Destacam-se, já na administração pombalina, as Cartas
sobre a Educação da Mocidade (1759), de António Nunes Ribeiro Sanches,
notadamente iluminista.
No Governo de D. José I e com a força política do seu principal ministro,
o Marquês de Pombal, Portugal se viu bafejado por ventos iluministas que
redundaram na expulsão dos jesuítas do Império Português, o que, segundo
4 Estatutos da Província de Santo Antônio do Brasil. Lisboa, Na Officina de Manuel e Joseph Lopes
Ferreira. 1709.
5 Regimento Administrativo da Venerável Ordem Terceira de Nosso Seráphico Padre S. Francisco da Cidade
de Noviços: 1768-1883 (In: Arquivo da Ordem Terceira de São Francisco de Assis da Bahia).
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Fernandes (1978, p. 69), acabou por favorecer o estabelecimento dos oratorianos.
Nesse contexto, o Alvará Régio de 28 de junho de 1759 criou o cargo de diretor
geral dos estudos, instituiu a prestação de exames para professores e nomeou
comissários destinados a fiscalizar o ensino. Essa substituição abrupta dos
educadores jesuítas acarretou dificuldades, uma vez que “desmantelou-se
toda uma estrutura administrativa de ensino” (Romanell i, 2003, p. 36), mas
não modificou o ensino nas suas bases; pois, além dos jesuítas, havia uma
enorme quantidade de clérigos, formados nos moldes da pedagogia jesuítica,
que continuaram a exercer a docência nas fazendas, nos seminários e foram
recrutados para as aulas régias instituídas pela reforma pombalina.
Com a chegada de D. João VI ao Brasil – sob a proteção da marinha
inglesa – e a abertura dos portos, com a confirmação de privilégios políticos
e comerciais concedidos à Inglaterra, teve início, no Brasil, como salienta
Seco (2004, p. 121), o chamado “século inglês”. A autora mostra a situação
educacional no período colonial, a desorganização advinda com a expulsão
dos jesuítas, a Reforma Pombalina e o estado da educação brasileira no século
XIX e argumenta, por meio do olhar dos viajantes ingleses, que “o processo de
europeização, intensificado com a abertura dos portos, colocou o problema da
educação, ou, melhor dizendo, a sua precariedade ou mesmo sua inexistência”.
Do olhar dos viajantes, Seco extrai opiniões e conselhos. Os estrangeiros
apontam caminhos, tais como fundar associações, organizar mostruários,
comprar livros de ciências, propagar instrução, incrementar a agricultura,
mudar costumes, educar todas as classes. Nos textos analisados por Seco, os
estrangeiros também acusam o Brasil de ser um lugar de incivilidade, falta de
higiene, ignorância geral e, sobre a história e geografia dos outros povos, falta
de livros ou existência de livros defasados, sujeira, imundície, ausência de cultura
e de pouca inteligência (Seco, p. 124), precariedade herdada, certamente, do
mundo colonial.
A COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
Quando os jesuítas chegaram ao Brasil, em 1549, tiveram que se
adaptar às peculiaridades do panorama tropical, tanto no que diz respeito às
condições físicas e materiais, quanto às características culturais. Essa adaptação
dos jesuítas não aconteceu de maneira muito fácil; pelo contrário, como
atestam os seus documentos epistolares, esses religiosos enfrentaram, desde
o início, dificuldades de toda sorte. Os jesuítas palmilharam todos os espaços
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do território colonial: o campo econômico, pacificando e adestrando a mãode-
obra indígena e negra; a seara política, exercendo forte influência junto à
Coroa Portuguesa e participando das mais importantes decisões políticas e
religiosas da época; as diversas instâncias da vida cultural, veiculando ideologias
literárias, imagéticas e religiosas; e, finalmente, o terreno prático, exercendo o
apostolado missionário, a educação formal e o sermonário religioso, pregado
nos púlpitos das igrejas.
A depender dos bons ventos políticos ou das adversidades que se
abateram sobre a Companhia, muita coisa aconteceu nos caminhos pedagógicos
idealizados por seus líderes. Na Europa, a função religiosa da Companhia de
Jesus foi, sobretudo, o combate aos hereges. A função educativa manteve-se
voltada para a formação dos seus próprios quadros e para a educação dos filhos
da elite. Nos territórios colonizados, a ação evangelizadora dos jesuítas tomou
outro rumo, por causa dos interesses da política econômica sobre as colônias
e da existência da escravidão. Uma linha missionária especial foi desenvolvida
para os redutos missionários (para os índios) e alguns tímidos encaminhamentos
foram pensados para a evangelização dos escravizados africanos.
Grande parte da literatura sobre a ação dos jesuítas na Colônia, afirma
Nagel (1996, p. 24-38), posiciona-se a favor ou contra os fatos, qualificando
moralmente a ação dos padres. Na perspectiva positiva, os jesuítas são vistos
como grandes catequistas, evangelizadores eficientes que despertavam muitas
vocações, bondosos cristãos, opositores da crueldade dos colonizadores,
defensores dos índios ou educadores conscientes que, compreendendo a
realidade dos gentios, amoldavam os ensinamentos à sociedade indígena. Na
perspectiva dos juízos negativos, muitas vezes, as críticas aos jesuítas seguem e
banalizam o modelo anticlericalista dos iluministas.6 Na visão da autora, como
o sujeito do projeto educacional colonial não tinha as características do sujeito
europeu, as condições da existência do ensino escolástico “esboroam-se” e é
substituído, principalmente junto aos índios, por rituais alegres, festas, música,
procissões e teatro, dando um novo significado ao termo de doutrina (que
passa a ser ato de negar a antropofagia, recusar a guerra, eliminar a preguiça
etc.). Doutrinar, neste novo contexto, significaria ensinar – através da fé – a
6 Ainda segundo Nagel (1996, p. 25), “as críticas negativas, [...] apontam, quase sempre, para dois aspectos.
Um identifica nos jesuítas ‘distorções na área afetiva’ tais como: autoritarismo, perversidade, violência,
controle, imposição. Outro identifica uma ‘limitação de ordem cognitiva’ que termina por fazer com que a
educação por eles encaminhada seja vista como fora da realidade do aluno ou da sociedade ‘brasileira’”.
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ter uma vida com normas, e obediência a um superior, sob as coordenadas do
trabalho (Nagel, 1996, p. 36).7
Quando Santo Inácio de Loyola morreu, em 1556, a Companhia, sob
a liderança do seu fundador, já tinha elaborado as suas principais regras de
sobrevivência, que foram as Constituições da Companhia de Jesus (1547-1551) e a
Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Iesu (1548-1599). E, em pouco tempo, já
espalhara sua influência teológico-pedagógica nos principais pontos da Europa
e nas colônias portuguesas de além mar. José Manoel Madureira (1929, p. 7)
apresenta um quadro sinóptico da expansão da Companhia de Jesus, desde
1540 até 1750. Esse quadro mostra que, em 1710, o número de jesuítas era de
19.978, distribuídos em 37 províncias e 1 vice-província, 24 casas de profissão,
612 colégios e 24 universidades, 150 seminários, 60 noviciados e 195 residências
de missões. Em 1750, apogeu numérico e véspera da reviravolta pombalina,
havia 22.126 jesuítas, 37 províncias e 1 vice-província, 25 casas de profissão,
578 colégios e 150 seminários.
Ao mesmo tempo em que ia se desdobrando e se multiplicando em
províncias administrativas, a princípio na Europa e, a seguir, por todo o orbe
católico, os jesuítas passavam a ter participação ativa sobre os destinos da
Igreja8 e aumentavam em número os seus colégios e universidades. Ao lado
disso, crescia o número de jesuítas ilustres que compunham seus quadros
e que trabalhavam sistematicamente no combate às heresias e na missão
evangelizadora dos gentios e infiéis. Ao morrer Inácio de Loyola, a Companhia
de Jesus havia alcançado um desenvolvimento extraordinário, o que continuou
a acontecer até a supressão da Ordem, em 1773.9
A maioria dos autores de História da Educação trata do método
jesuítico baseado no rigor escolástico. Podemos mencionar três documentos,
organizados por Inácio de Loyola, que direcionaram, de uma maneira muito
rígida, a metodologia jesuítica encaminhada nos colégios: os Exercícios
Espirituais; a parte IV das Constituições da Companhia de Jesus e a Ratio Atque
7 Concordamos com Lízia Nagel (1996, p. 24-38), e lembramos que os jesuítas, desde a sua chegada,
tiveram, ademais, que vencer as barreiras da língua (aprendendo a língua nativa, elaborando uma linguagem
comum – a língua “geral” – e, posteriormente, ensinando o português, a língua do conquistador) para,
depois, doutrinar.
8 Atuaram na elaboração das disposições do Concílio de Trento, onde se reuniram as maiores autoridades
teológicas daquele tempo, os jesuítas Diogo Laínez, Alfonso Salméron, Nicolau Bobadilha e o português
Simão Rodrigues (Vill oslad; Loorca; Montalban, 1960, p. 825).
9 “A Companhia de Jesus foi supressa pelo Papa Clemente XIV, em 8 de junho de 1773, e restaurada quarenta
e um anos depois pelo Papa Pio VII, em 7 de agosto de 1814” (Bangert, 1985).
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Institutio Studiorum Societatis Iesu.10 Muitos falam das aulas, das disputas, da
censura de autores, das proibições de determinadas obras e/ou trechos de
obras e atestam como os métodos jesuíticos eram rígidos.11 Mas, podemos
dizer que o principal instrumento modelador da pedagogia jesuítica foi
o texto dos Exercícios Espirituais, transmitido por Inácio aos primeiros
companheiros, adotado e disseminado por eles como manual de orientação
espiritual. Inácio define a função dos exercícios na prática espiritual da
seguinte forma:
Por esta expressão, exercícios espirituais, entende-se qualquer modo
de examinar a consciência, de meditar, contemplar, orar vocal ou
mentalmente, e outras atividades espirituais [...] porque, assim como
passear, caminhar, correr, são exercícios corporais, também se chamam
Exercícios Espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e
dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas, e afastando-as,
procurar e encontrar a vontade de Deus, na disposição da própria vida
para o bem da mesma pessoa (apud Klein, 1997, p. 26).
Santo Inácio de Loyola foi eleito pelos companheiros e encarregado de
redigir as Constituições da Companhia de Jesus, concluídas em 1551, fortemente
fundamentadas nos Exercícios Espirituais. Na sua parte IV, intitulada “Como
instruir nas letras e em outros meios de ajudar o próximo e os que permanecerem
na Companhia”, as Constituições tratam da educação escolar e das instituições
educativas. Elas surgiram tanto para assegurar certa uniformidade diante do
crescimento acelerado da Ordem, quanto para atender às exigências específicas
dos diversos ambientes culturais onde os colégios se instalaram, garantindo,
igualmente, que estes não perdessem as características básicas. Os jesuítas
fundam, pois, “colégios e também algumas universidades, onde os que
deram boa conta de si nas casas [de formação inicial] e foram recebidos sem
os conhecimentos doutrinais necessários possam-se instruir-se neles e nos
outros meios de ajudar as almas” (Klein, 1997, p. 27). Na redação do texto,
os jesuítas se serviram das primeiras experiências pedagógicas e dos estatutos
de outras universidades européias. O texto expressa os princípios pedagógicos
jesuíticos de modo ainda geral, com a promessa de ser complementado por
um documento posterior:
10 Cf. Loyola (1952).
11 Cf. Terra (1988), Leite (1938), Carvalho (1996), Klein (1997) e Toledo (2001).
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As horas de aula, com a ordem e o método próprio, os exercícios [...] tudo
isso se indicará em pormenor em tratado à parte aprovado pelo Geral,
ao qual a presente Constituição remete o leitor [...]. Como nos casos
particulares há de haver grande variedade, consoante as circunstâncias
de lugares e de pessoas, não se desce a mais pormenores. Basta dizer
que haja Regras, que se apliquem a todas as necessidades de cada colégio
(apud Klein, 1997, p. 29).
Se as Constituições contêm a essência da missão inaciana e a sua parte IV
contém os princípios pedagógicos inacianos, pode-se dizer que a Ratio Studiorum,
na sua versão definitiva, de 1599, é o conjunto de normas pedagógicas, com
seiscentas regras que vão permitir a prática educativa, religiosa e missionária
daqueles princípios pedagógicos. Mas, a motivação inicial e os propósitos
inacianos dos Exercícios são os mesmos que perpassam os princípios contidos
nas Constituições e a prática recomendada na Ratio Studiorum. A maneira como
foram elaboradas as Constituições e a Ratio garantiram o caráter unitário do modo
de vida jesuítico e permitiram uma flexibilidade e autonomia que possibilitaram
a propagação do apostolado da Companhia por todo o orbe cristão. Esses três
documentos foram as diretrizes que garantiram a uniformidade da prática
pedagógica dos jesuítas em toda a sua caminhada missionária e doutrinária,
com adaptações necessárias, caso se tratasse do Império Português, do combate
aos hereges, da evangelização dos europeus, da catequese dos negros da terra
do Brasil (índios) ou dos africanos escravizados.
A Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Iesu é o documento que trata mais
especificamente das razões da educação da Companhia de Jesus, e influenciou,
sobremaneira, a educação escolar e a pedagogia do mundo inteiro. Seu texto
não explicita uma concepção pedagógica, no sentido de uma sistematização
educacional completa, mas aconselha um ordenamento para as atividades,
funções, metodologias e modos de avaliação na Companhia de Jesus.
As “novidades” pedagógicas da Ratio, afirma Cezar Arnaut de Toledo
(2001), consubstanciadas depois numa prática política e pedagógica de grande
eficácia socioeducacional, contribuíram tanto para o sucesso da Ordem
quanto para a perseguição que sofreram seus membros, e que culminou com
a sua extinção em 1773. Dentre as mais importantes inovações da Ratio, há
que se destacar o planejamento do ensino por metas e objetivos e a avaliação
constante, que se tornaram fatores básicos da educação moderna. Segundo
Toledo (2001, p. 3),
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a razão de estudos é inseparável da razão política. Isso pode ser
verificado ao lermos o texto e o relacionarmos com o momento histórico
em que viveram os primeiros jesuítas. Tal ligação sempre foi de grande
eficácia e produtividade, mesmo que não tenha sido a meta precípua
do ordenamento de estudos.
Ainda segundo o autor, a Ratio Studiorum marcou, indelevelmente,
tanto a educação escolar quanto a pedagogia moderna, dentro do espírito de
transformações do século XVI. A expansão da Companhia de Jesus requeria
militantes da fé católica e deveria ser calcada, também, na grande ênfase dada
à educação e formação de elites intelectuais e políticas nas várias nações. Em
busca de um ordenamento único e planejado do ensino, os jesuítas se puseram
a conceber e elaborar um grande plano geral de estudos. As normas internas
dos colégios já existentes serviram de ponto de partida e inspiração para a
elaboração das primeiras versões do Ordenamento de Estudos. Toledo (2001, p.
3) destaca algumas idéias norteadoras:
Há também, no documento, além de normas para a espiritualidade
dos noviços estudantes, inclusive para a confissão (sacramento de
suma importância para os jesuítas), uma importante referência à mais
comum prática dos superiores jesuítas do período: a documentação das
experiências realizadas [...] Os dois documentos definem o novo rumo
da educação e do ensino, calcados, a partir de então, na documentação
das experiências realizadas e também, no planejamento das atividades
executadas. Nem esses dois textos e nem a própria Ratio Studiorum
indicam ou expressam novos métodos pedagógicos.
Como já foi dito, a Ratio Studiorum não foi uma concepção pedagógica
nem um conjunto de métodos ou técnicas de ensino. Aliás, na visão dos padres
elaboradores do texto, não havia a pretensão de questionarem princípios
pedagógicos, da fé ou da moral. Os princípios deveriam ser exatamente aqueles
que deram origem à Companhia de Jesus, dentro do espírito da contra-Reforma:
reafirmar e expandir a fé católica através de todos os meios, “para a maior
glória de Deus” (Toledo, 2001, p. 5).
A Ratio Studiorum contribuiu grandemente para a formação da prática
pedagógica na Modernidade, como um importante ofício na economia da
salvação. Essa repercussão se fez sentir, também, nas crenças e comportamentos
dos professores das escolas, evidentemente. Um professor, para uma escola como
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essa, deveria ser, também, um exemplo de fé. Esse foi um fator que se estendeu
também a outras concepções pedagógicas modernas e contemporâneas (Toledo,
2001). Podemos dizer, ainda, que a Ratio se constituiu num paradigma importante
para a educação escolar e para a pedagogia até o início do século XX.
PENSAMENTOS PEDAGÓGICOS NO BRASIL COLONIAL
Subjacentes aos currículos e conteúdos permitidos nos colégios e
na catequese, circularam no Brasil colonial e no Império Português idéias
pedagógicas inspiradas na filosofia clássica, no Estoicismo, nas Sagradas
Escrituras, na Patrística, na Escolástica. Essas idéias, baseadas em princípios
do Antigo Testamento e nos ensinamentos cristãos e veiculadas em sermões,
livros de teologia, reflexões morais e manuais doutrinários, autorizados pela
própria Igreja, no desenrolar da história foram sendo ressignificadas e adaptadas
à compreensão e à conveniência de cada tempo e lugar por canonistas, teólogos
e moralistas, comumente chamados doutores da Igreja. Principalmente a partir
de meados do século XVII, e até a primeira metade do século XVIII, estas
idéias passaram a ser difundidas com mais vigor.
Estudiosos da Colônia nomeiam os principais intelectuais orgânicos
que influenciaram e foram influenciados por idéias pedagógicas que, segundo
a nossa interpretação, estavam a serviço de uma pedagogia da dominação.12 E
todos admiram como estes intelectuais foram eficientes, prevalentemente os
jesuítas Antônio Vieira, Jorge Benci e João Antônio Andreoni (conhecido pelo
pseudônimo Antonil); o oratoriano Manuel Bernardes e o Padre Diocesano
Manoel Ribeiro Rocha (Casimiro, 2002).
Desses intelectuais, Jorge Benci, especialmente, sistematizou uma obra
de finalidade estritamente pedagógica, Economia Cristã dos Senhores no
Governo dos Escravos, em função de um problema real, que, certamente,
era um ponto nevrálgico na consciência da Igreja: a existência da escravidão.13
Esta obra vai fundamentar as leis canônicas e as formas de educação religiosa
que vigorarão até o século XIX, quando novos clamores contra a escravidão
ecoarão na alvorada pombalina.
12 Cf. Vainf as (1986), Bosi (1992) e Hugo Fragoso (1992, 2000).
13 Publicada em 1700, a obra continha uma concepção pedagógica elaborada especialmente para atender
às relações entre senhores e escravos no contexto econômico, social, político e religioso colonial. É uma
concepção pedagógica consistente; contém todos os pressupostos que caracterizam uma proposta pedagógica,
ou seja, princípios pedagógicos, missão, pressupostos da aprendizagem, regras, objetivos, conteúdos, métodos
e técnicas, avaliação e normas disciplinares (Casimiro, 2002).
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As idéias morais e teológicas de Benci e dos seus coetâneos, advindas
da Patrística e da Escolástica, influenciaram, sobremaneira, na elaboração
das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707 pelo
Arcebispo D. Sebastião Monteiro da Vide, e, por uns dois séculos, forneceram
as diretrizes jurídicas, ideológicas, religiosas e pedagógicas para confirmar e
legitimar o sistema de poder imposto pelo Estado Absolutista e pela Igreja.
Organizadas em cinco livros,14 elaborados por peritos sob a presidência
de D. Sebastião Monteiro da Vide, as Constituições baianas se baseiam na tradição
cristã, nos livros da Sagrada Escritura e no Direito Canônico. Dos dezenove
examinadores sinodais nomeados para a sua elaboração, seis eram jesuítas, dois
eram beneditinos, dois eram carmelitas, dois franciscanos, um agostiniano e
um era carmelita descalço. Os cinco restantes eram padres seculares de altas
dignidades eclesiásticas (Vide, 1853, p. 521).
Fica evidenciada, pois, a existência de uma forma de pensamento
pedagógico, vivo e cambiante da Igreja, um pensamento determinado sobre o
tipo de educação pertinente a cada segmento que compunha aquela sociedade.
Nessa dialética, Jorge Benci, principalmente, recebeu influências não só de
Vieira e de outros letrados que clamaram contra a escravidão na Colônia e
preconizaram formas de educação, mas, também, dos mais renomados teólogos
e moralistas em voga naquela época. Por sua vez, Benci influenciou pensamentos
vindouros, como os dos peritos que redigiram as Constituições Primeiras e Manoel
Ribeiro da Rocha, já no contexto iluminista (Rocha, 1992).
CATECISMOS COLONIAIS
Desde a Antigüidade até o início da Idade Moderna notabilizaram-se, em
cada tempo, as catequeses de S. Cirilo, Santo Agostinho e S. Tomás de Aquino,
com catecismos que forneceram o modelo padrão que orientou a evangelização
cristã, com normas para suscitar a fé, administrar os sacramentos e exercitar
a oração: crer, agir e orar (Martins, 1951, p. 20). A partir do século XVI, de
14 O Livro Primeiro trata da fé católica, da doutrina, da denúncia dos hereges, da adoração, do culto, dos
sacramentos; o Livro Segundo trata dos ritos, da missa, da esmola, da guarda dos domingos e dias santos, do
jejum, das proibições canônicas, dos dízimos, primícias e oblações; o Livro Terceiro fala sobre as atitudes e
o comportamento do clero, das indumentárias clericais, das procissões, do cumprimento dos ofícios divinos,
da pregação, do provimento das igrejas, dos livros de registros das paróquias, dos funcionários eclesiásticos,
dos mosteiros e igrejas dos conventos; o Livro Quarto fala das imunidades eclesiásticas, da preservação do
patrimônio da Igreja, das isenções, privilégios e punições dos clérigos, do poder eclesiástico, dos ornamentos
e bens móveis das igrejas, da reverência devida e da profanação de lugares sagrados, da imunidade aos
acoutados, dos testamentos e legados dos clérigos, dos enterros e das sepulturas, dos ofícios pelos defuntos;
o Livro Quinto trata sobre as transgressões (heresias, blasfêmias, feitiçarias, sacrilégio, perjúrio, usura, etc.),
das acusações e das respectivas penas (excomunhão, suspensões, prisão etc.).
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acordo com as ordens tridentinas, elaborou-se o Catecismo Romano, cujo modelo
inspirador foi o manual pastoral trabalhado pelos jesuítas S. Pedro Canísio,
Edmundo Auger e Cardeal Roberto Belarmino.
Em Portugal, a Doutrina Cristã do jesuíta Marcos Jorge foi composta a
pedido do Cardeal D. Henrique, tratando sumariamente dos seguintes pontos:
Sois cristãos? Que quer dizer cristão? Sinal do cristão, Pater-noster, Ave-Maria,
Salve Rainha, Credo, artigos da Fé, Mandamentos de Deus, Mandamentos da
Igreja, sete pecados capitais, Sacramentos, boas obras, oração, jejum, esmola,
as obras de misericórdia, as virtudes teologais, os dons do Espírito Santo, as
bem-aventuranças, os conselhos evangélicos, o modo de ajudar a missa, orações,
e bênção de mesa (Martins, 1951, p. 21).
Poucos anos depois da primeira edição, os jesuítas introduziram o
Catecismo de Marcos Jorge no Brasil e, em 1574, o Padre Leonardo Vale, S. J.,
trasladou-o para o tupi. Como se pode observar, a maior parte dos religiosos
envolvidos na elaboração do Catecismo Romano pertenceu à Companhia de Jesus
(Martins, 1951, p. 20-21). Em 1559, saiu em Portugal a primeira edição do
Compêndio de Doutrina Cristã, de Frei Luís de Granada, versando sobre o Símbolo
(o Credo), os Mandamentos, a oração, a graça, as obras que acompanham a
oração, os Sacramentos etc.
Os primeiros catecismos da América são anteriores ou contemporâneos aos
de Lutero, S. Pedro Canísio e Cardeal Belarmino. Segundo Martins (1951, p. 25):
desde logo se fez sentir a falta de manuais apropriados para a
catequização dos infiéis. Sem perda de tempo, fizeram os missionários
cartilhas ou cartinhas. Em parte, adotavam e reduziam a matéria dos
catecismos europeus. Na América, circulavam exemplares copiados à
mão, e nem todos os catecismos chegaram a ser impressos.
A necessidade de um manual de instrução para padres, leigos, crianças e
infiéis, foi discutida desde o início do Concílio de Trento, quando os pontífices
publicaram diversas encíclicas visando a uma ampla divulgação do Catecismo
Romano. Ao lado disso, apareceram várias versões em línguas modernas, e foi
realizada uma tradução para o português, em 1590, pelo Padre Cristóvão de
Matos. A partir do século XVIII, o jansenismo e o racionalismo investiram
contra a pedagogia cristã tradicional, como estava exposta no Catecismo
Tridentino (Martins, 1951, p. 25-26).
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No campo da educação cristã, prevalentemente para a catequese dos
índios e negros, segundo Martins Terra (1988), os jesuítas procuravam aprender
as suas línguas e elaborar catecismos, e, quanto aos escravos africanos, havia
uma espécie de intercâmbio entre a Província do Brasil e as missões de Angola,
tendo alguns estudantes do Colégio de Luanda sido escolhidos para serem
missionários no Brasil. Alguns deles elaboraram catecismos e manuais de
instrução na língua dos negros.
Além de obras catequéticas, circularam, em Portugal e nas suas colônias,
algumas cartilhas e manuais de instrução, impressos e manuscritos, com
conteúdos de primeiras letras, rudimentos de gramática e aritmética, noções
morais e noções de catequese. Nestes manuais a parte dedicada à doutrina
era, geralmente, bem maior do que aquela dedicada aos conteúdos científicos.
Rogério Fernandes (1978) comenta várias dessas obras que começaram a surgir
em Portugal no início do século XVI e continuaram a ser produzidas durante
todo o século XVII e XVIII, quando, a partir da década de 40, foram, aos
poucos, evidenciando uma crescente influência iluminista.
Um manual dirigido aos mestres e intitulado Breve Instrucçam para ensignar
a Doutrina christaã; Ler e escrever aos Meninos e ao mesmo tempo os principios da Lingoa
Portuguesa e sua Orthografia, de autor desconhecido, circulou no Brasil colonial.15 O
manual, de data incerta, parece ter sido direcionado aos mestres que educavam
meninos livres. Apresenta categorias pedagógicas, cujos enfoques didáticos,
religiosos e morais permitem assinalar alguns pontos comuns com a Economia
Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos.16
A Breve Instrucçam assemelha-se, também, às cartilhas portuguesas
que predominaram até o século XVIII,17 como, por exemplo, outro manual,
Nova Escola para Aprender a Ler, Escrever e Contar, de Manoel de Andrade de
15 Cf. Andrade (1978).
16 Independente do momento exato do seu surgimento, as características mais amplas da pedagogia moderna,
contidas nesses manuais, se conformaram, nos países católicos, a partir do início do século XVI.
17 Rogério Fernandes fala da existência de mais de dez livros didáticos de língua portuguesa, geralmente
destinados como guias para os mestres. Para o autor, remonta ao final da Idade Média a existência de professores
profissionais, ao lado dos clérigos, e era provável que os textos utilizados nesse período inicial fossem apenas orais.
Informa, outrossim, que a partir do século XVI, surgem os primeiros impressos (Fernandes, 1978, p. 10). Atribui
Fernandes o texto impresso à ação da Igreja, e o texto manuscrito às possibilidades dos referidos mestres leigos,
que começaram, nesse período, a exercer a profissão docente. Essa prática correspondia aos primeiros “albores”
da laicização da profissão e a “carta” manuscrita copiava e substituía, em muitas situações, o catecismo impresso
usado oficialmente pela Igreja. Não sem críticas e reclamações, uma vez que, nesses casos, na visão dos clérigos, os
conteúdos religiosos eram prejudicados, pois “em vez de silabários impressos graças à diligência de eclesiásticos, os
mestres de meninos recorriam a extratos manuscritos extraídos de processos judiciais e documentos de natureza
comercial como base do ensino de leitura” (Fernandes, 1978, p. 10).
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Figueiredo, impresso em Lisboa, em 1722.18 Contraponto para a compreensão
tanto da Breve Instrucçam quanto da Economia Cristã, a Nova Escola apresenta
alguns pontos de consenso com outras cartilhas. Por exemplo, a preleção aos
mestres, a idéia subjacente de conjugação da autoridade real com a autoridade
eclesiástica e os temas abordados. De objetivos mais práticos, a referida obra
dedica menos tempo à doutrina e mais tempo à estética caligráfica e aos
conteúdos de Aritmética.
CONCLUSÕES
A história da colonização, nos séculos XVI, XVII e XVIII apresenta
modelos diferenciados de educação, segundo os agentes envolvidos e segundo
o lugar social de cada educando. A educação institucionalizada se dava nos
colégios, nas missões e em alguns organismos sociais, como irmandades, ordens
terceiras, paróquias e corporações de ofício. Acontecia, ainda, de modo mais
informal, nas senzalas e nas casas das famílias. Tinha, como principal agente
a Igreja Católica que, com o Estado, atuava no campo educacional, no campo
religioso e direcionava a moral, a ética, os costumes, os direitos e os deveres
do homem colonial. Atuando na educação e na evangelização estavam parcelas
do clero diocesano e as ordens religiosas aqui instaladas, capitaneadas pela
Companhia de Jesus.
Subjacente às regras e à práxis religiosa e educacional tradicionalmente
conhecida na Colônia, observamos, mediante vários signos culturais,19 que era
disseminada, pela religião, uma pedagogia religiosa que extrapolava não só os
limites da educação ministrada nas escolas de primeiras letras, nos colégios e nas
missões, mas, também, os limites da educação ministrada no lar e nas paróquias.
Era uma pedagogia que impregnava a sociedade colonial em todos os seus
espaços, públicos e privados, que doutrinava e que castigava – em nome da fé
– indistintamente, vigilante noite e dia, e da qual, todos eram, ao mesmo tempo,
mestres e alunos. Essa pedagogia, transplantada de Portugal, foi a quintessência
da vida colonial e – mesmo quando terminaram as relações coloniais, com
a vinda de D. João VI, com a Independência do Brasil e, mais tarde, com a
Proclamação da República – muitos dos seus traços permaneceram.
18 Cf. Palú (1978/1979).
19 A música, a arquitetura, a pintura, a escultura, a talha, a procissão, a ornamentação das igrejas, os textos
literários, os sermões – enfim, as mais importantes manifestações culturais daquele tempo visavam uma
educação para a dilatação da fé (Casimiro, 1996; 2002).
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CHURCH, PEDAGOGY, AND
AFRICAN SLAVES IN COLONIAL BRASIL
ABSTRACT
From a long during panorama that it called the “History of Colonial Brazil”, we think
about some dominants pedagogics ideas and literature as catechisms, books and school
manuals, that show us the culture and the modality of school education, used at colonial
period, in Brazils land. The first dedicate to evangelize the cristian education. The books and
the school manuals dedicate to teach the first caracters, the arithimetic and catholic religion.
We think also about the most important articles of Inácio: The Spirituals Exercises,
The Constitution of Jesus Company and the Ratio Atque Institutio Studiorum
Societatis Iesu, relating these documents with the direction that the company followed since
Inácio de Loyola, until the supretion of the organization in 1973, and the influence of these
documents in educational purpose of the Jesuits.
KEY-WORDS: Books. Catechisms. Colonial Brazil. Educational Purpose of the Jesuits.
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